anistiaA ministra Damares Alves abriu uma nova trincheira contra os direitos humanos. Ela publicou no Diário Oficial da União, dia 8, um conjunto de portarias para anular 295 anistias concedidas a ex-cabos da Força Aérea Brasileira (FAB), perseguidos pela ditadura militar (1964-1985). A medida é contestada por especialistas da UFRJ. “Esse é um precedente grave para as anistias já concedidas”, avalia Maria Paula Nascimento Araujo, titular do Instituto de História e ex-diretora da Adufrj. “Os militares sempre tiveram dificuldade em reconhecer que houve vários casos de perseguição dentro da corporação. E sempre alegam questões de disciplina e hierarquia para negar o caráter político das ações”.
A docente coordenou, com outros pesquisadores, o projeto Marcas da Memória, sobre a repressão no Brasil. O trabalho colheu, por quatro anos, depoimentos. “Esses cabos eram pessoas de origem popular que viam na carreira militar uma possibilidade de ascensão social. Não eram militantes políticos, organizados em partidos de esquerda. Mas tiveram a vida desestruturada pela não adesão imediata ao golpe”, explica. Ela e outros especialistas em ditaduras no Brasil e na América Latina assinam uma nota pública de repúdio ao retrocesso na política de anistia (leia abaixo).
Francisco Carlos Teixeira, também titular do IH, destaca que os militares foram os mais atingidos enquanto categoria. “Foram os mais cassados, o maior número de baixas”, diz o historiador. E afirma: “Antes de 1964, as forças militares eram compostas por muita diversidade. Havia nacionalistas, liberais, conservadores, pessoas de esquerda dentro do grupo. A primeira coisa que o grupo que assumiu o poder fez foi uma limpeza ideológica em todos os níveis, da baixa patente até almirantes”.
Segundo o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) - divulgado em 10 de dezembro de 2014, 6.591 militares foram presos, torturados ou processados pela ditadura militar (1964-1985). E a Aeronáutica foi a força com maior número de perseguidos pelo regime: 3.340.
 
CONTROVÉRSiA JURÍDICA
O argumento do governo para suspender as anistias é que haveria “ausência de comprovação da existência de perseguição exclusivamente política no ato concessivo”. E ele se apoia em julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF), realizado em outubro de 2019, que indicou ser constitucional a possibilidade de revogação das anistias. A decisão do Supremo, à época,  teve votação apertada de seis votos a cinco. E, agora, suscita diferentes interpretações. A ministra da pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Jair Bolsonaro afirma que a portaria de 1964 que desligou o grupo de militares teria sido um ato meramente administrativo. Pois os ex-oficiais não teriam comprovado perseguição política.
Mas, para a procuradora da República Eugênia Augusta Gonzaga, por exemplo, a decisão do Supremo tem sentido inverso, cabendo ao Estado a obrigação de provar que os atos de exceção não tiveram, de fato, motivações políticas. A ex-presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos defendeu o ponto em uma live, realizada na terça-feira (9), destacando que o caso é expressamente citado na lei de Anistia.
A Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002, prevê entre anistiados políticos aqueles que, no período de 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988, por motivação exclusivamente política  foram “impedidos de exercer, na vida civil, atividade profissional específica em decorrência das Portarias Reservadas do Ministério da Aeronáutica nº S-50-GM5, de 19 de junho de 1964, e nº S-285-GM5”.
Damares também sinalizou, no início da semana, a intenção de dissolver a Comissão de Anistia – responsável por analisar os processos de pedidos de anistia – até o final do ano que vem. Em 2019, os processos aprovados pela comissão que aguardam uma manifestação da ministra ultrapassa 11 mil solicitações  pendentes. O número não inclui as solicitações de revisão.

Nota de historiadores contrários à anulação das anistias

Somos historiadores/as que estudam o processo político contemporâneo do Brasil e da América Latina. Temos estudado a difícil transição do Brasil de uma ditadura militar para um regime democrático. Nesta transição algumas questões são fundamentais, entre elas, a implementação de medidas de justiça transicional e de políticas de memória, sempre com o objetivo de reparar as vítimas, revelar a verdade factual, garantir a não repetição das violações aos direitos humanos e construir um novo pacto republicano. Com avanços e recuos, o país seguia este caminho, apoiado nos trabalhos de algumas instituições importantes: a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (criada em 1995), a Comissão de Anistia (criada em 2001) e a Comissão Nacional da Verdade (instituída em 2012).
Vimos, portanto, com grande preocupação, a anulação de quase 300 anistias concedidas a cabos da Força Aérea Brasileira (FAB). Sabemos que, historicamente, cabos, sargentos e militares de baixa patente têm enormes dificuldades de obterem anistia, pois sempre se alega que as punições que lhes foram impostas não foram por motivos políticos e sim por questões referentes a atos de indisciplina, quebra de hierarquia ou simples questões trabalhistas. Justamente o que está sendo alegado no caso presente.
Essas alegações costumeiramente ignoram que a quebra de hierarquia militar e as reformulações de relações trabalhistas foram repetidamente instrumentalizadas para camuflar as pressões internas, perseguição e violências imputadas aos militares que não apoiaram o golpe de 1964.
Essa ocultação da perseguição política por meio de estratagemas burocráticos apareceu em diversos materiais coletados pelas comissões da verdade, pela Comissão de Anistia e pela Comissão Especial Sobre Mortos e Desaparecidos Políticos no decorrer dos anos. Enfatizando, inclusive, a existência de casos de humilhação, tortura e até morte entre os cabos e militares de baixa patente das Forças Armadas Brasileiras.
Parece-nos que a anulação destas anistias resulta em injustiça para com os militares em questão. Além disso, cria um perigoso precedente de revisão de direitos conquistados por perseguidos e perseguidas políticos/as e que ameaçam a continuidade das políticas de memória, verdade e justiça de nosso país.
Alessandra Gasparotto (UFPel) Ana Carolina da Cunha Borges Antão (mestra pela Fiocruz) Anderson da Silva Almeida (UFAL) Andrea Casa Nova (UFRJ) Angela de Castro Gomes (UFF, UNIRIO) Angela Moreira Domingues da Silva (FGV) Antonio Montenegro (UFPE) Carla Simone Rodeghero (UFRGS) Carlos Eduardo Malagutti Camacho (doutorando na UFRRJ) Caroline Silveira Bauer (UFRGS) Clarice GontarskiSperanza (UFRGS) Daniel Aarão Reis (UFF) Dante Guimaraens Guazzelli (SMEC - Porto Alegre) Débora Strieder Kreuz (UESPI) Denise Rollemberg (UFF) Desirree Reis (doutoranda na UNIRIO) Diorge Alceno Konrad (UFSM) Dulce Pandolfi  (Univ. da Cidadania/UFRJ) Eduardo Stotz (Fiocruz) e Presidente da CMVP (2016-2018) Elson Luiz M T da Silva (mestre pela Unifesp) Evandro Jose Braga (professor na SEE SP) Fernanda Abreu (doutoranda na PUC-Rio) Gislene Lacerda (doutora pela UFRJ) Glenda Gathe Alves (mestra pela UFRJ) Isabel Cristina Leite (pós-doutoranda na UFF) Izabel Pimentel (UERJ-FFP/UFRJ) Jean Rodrigues (UFRRJ) Jessie Jane Vieira de Souza (UFRJ) Joana Maria Pedro (UFSC) João Roberto Martins Filho (UFSCar) João Teofilo (doutorando na UFMG) Lays Correa da Silva (doutoranda na UFRJ) Lineker Noberto (UNEB) Lucas Pedretti (doutorando no IESP/UERJ) Lucileide Costa Cardoso (UFBA) Luiz Paulo Ferraz (pós doutorando na Brown University) Marcelo Ridenti (UNICAMP) Marcos Napolitano (USP) Maria Cecília de Oliveira Adão (Claretiano - Centro Universitário) Maria Paula Nascimento Araujo (UFRJ) Mariana Joffily  (UDESC) Mariluci Vargas (pós-doutoranda na UFRGS) Marina Mesquita Camisasca (doutoranda na UFMG) Mateus Gamba Torres (UnB) Miriam Hermeto (UFMG) Paula Franco (doutoranda na UnB) Paulo César Gomes (UFF) Paulo Fontes (UFRJ) Rodrigo Patto Sá Motta (UFMG) Samantha Quadrat (UFF)