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WhatsApp Image 2023 02 03 at 20.37.43 2Foto: Divulgação/ABL"Desconfio que Cleonice foi um dos últimos heterônimos de Pessoa”. Assim o professor Marco Lucchesi define a colega Cleonice Seroa da Mota Berardinelli, ou simplesmente “Dona Cléo”, emérita da UFRJ que nos deixou esta semana, aos 106 anos. O ex-presidente da Academia Brasileira de Letras presta uma justa homenagem para a autora da primeira tese brasileira — a segunda no mundo — sobre o português Fernando Pessoa, conhecido por suas diferentes personalidades poéticas.

Lucchesi estreitou os laços com Berardinelli na ABL, onde ingressou em 2011. O afeto era anterior. “Conheço dona Cleonice desde as suas primeiras páginas, que alcancei sobre Pessoa e Camões. Eu a amava antes de a conhecer”, diz o atual presidente da Biblioteca Nacional. “Era uma presença solar na Academia Brasileira de Letras”.

Ocupante da cadeira número 8 na ABL desde 2009, a imortal também deixou sua marca de conhecimento e simpatia na Faculdade de Letras da UFRJ. “Dona Cléo é bibliografia básica. Não há como passar pelos clássicos da literatura portuguesa sem nos determos em estudos produzidos por dona Cleonice”, explica a professora Luci Ruas.

O setor de literatura portuguesa da faculdade deve o atual perfil a Dona Cléo, que assumiu a coordenação nos anos 60 e convidou professores para formar um grupo de alto nível. À época, não havia concursos públicos. “A partir dessa geração, formaram-se as seguintes”, recorda Luci. “Nós nos tornamos, no final de década de 80, o maior setor de literatura portuguesa do mundo. Nem em Portugal havia um setor tão grande como o nosso”.

Orientada por dona Cléo no mestrado e no doutorado, Luci relatou uma história que expressa a generosidade da mestra com os alunos. “Quando terminei o doutorado, ela me emprestou uma primeira edição do primeiro romance de Vergílio Ferreira. Era uma edição de 1943, já bastante desgastada. Após algum tempo comigo, mandei restaurar, com uma capa dura e fui devolver”. No fim das contas, Dona Cléo decidiu que a ex-orientanda deveria ficar com o exemplar, de valor inestimável.

Uma figura generosa e de indiscutível prestígio internacional. Doutora Honoris Causa da universidade de Coimbra, membro da Academia de Letras de Lisboa, Cleonice fez parte da “equipa Pessoa”, um grupo de intelectuais que trabalhou com os originais de Fernando Pessoa nos anos 80. “Ela foi a única brasileira a fazer parte desta ‘equipa’. Eles não dizem ‘equipe’. Cleonice trabalhou sobre o heterônimo Álvaro de Campos. Isso diz a importância de Cleonice dentro da cena internacional de estudos literários”, afirma a professora emérita Teresa Cerdeira.

Mas Dona Cléo não era só uma especialista em Fernando Pessoa. “Era uma pesquisadora de largo espectro. Nos anos 50 a 60, dava aula da idade média ao século XX. Era uma especialista em Camões, Fernando Pessoa, Eça de Queiroz, Gil Vicente, Antero de Quental e Padre Antônio Vieira”. E não parava por aí. Cleonice estudava com alunos da UFRJ os autores contemporâneos. “Ela não se limitava aos clássicos. Ela aceitou que eu fizesse uma tese em 1987 sobre José Saramago, que, naquele momento, não era Prêmio Nobel de Literatura, tinha publicado apenas três livros e estava publicando o quarto. Quer dizer, mantinha atenção ao que estava ocorrendo”.

A “antenada” Dona Cléo era amiga de escritores do quilate de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, também professor da UFRJ. “Drummond dedicou um poema para ela. Manuel Bandeira fez inúmeros elogios a um programa que ela tinha na rádio MEC, no qual lia e falava sobre poesia”. O programa não poderia ter melhor locutora. “Era dotada de uma voz belíssima. Participou de um projeto, que se tornou um filme, com a Maria Bethânia, chamado ‘Vento lá fora’, em que lia os poemas de Fernando Pessoa. Fez depois com a Adriana Calcanhoto um trabalho em que liam o poeta Mário de Sá-Carneiro”.

Fernando Pessoa escreveu, de forma humilde, “se depois de eu morrer quiserem escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tenho só duas datas: a de minha nascença e a de minha morte. Entre uma e outra, todos os dias são meus.” O que já não é verdade para o poeta português, muito menos seria para seu “heterônimo” Cleonice Berardinelli, que vai fazer muita falta. “Cleonice era uma espécie de centro luminoso que não guardava luz só para ela”, conclui Teresa.

“Sou professora da UFRJ”

Em setembro de 2020, por ocasião do centenário da UFRJ, a repórter Silvana Sá entrevistou docentes com mais de um século de idade para o Jornal da AdUFRJ. No lugar de dona Cleonice, então com 104 anos e com muitas dificuldades para se comunicar, a sobrinha Sônia Botelho falou à reportagem sobre a tia famosa, enfermeira na Segunda Guerra Mundial e pioneira nos estudos literários. “Sobressaiu em tudo que fez, mas, se perguntassem a ela, qual sua profissão, ela dizia: ‘sou professora da UFRJ’”, resumiu. “A vida inteira, mesmo tendo dado aulas em outras universidades dentro e fora do país, quando se referia à UFRJ, dizia: ‘a minha faculdade’”, completou.

Cleonice deu aulas até os 98 anos e colecionou uma legião de fãs. Entre eles, a professora Eleonora Ziller, ex-presidente da AdUFRJ. “Ela lidava em sala de aula com uma paixão incrível”, afirmou, naquela mesma reportagem. Aluna de Cleonice no doutorado, Nora considera que aquele período transformou sua formação. “Ter sido aluna da professora Cleonice Berardinelli significou muito mais do que eu poderia imaginar naquela manhã, quando decidi me inscrever no seu curso”.

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