Com a fala embargada pela emoção, professores, estudantes e técnicos homenagearam 23 alunos e dois docentes que dedicaram a vida à democracia e foram assassinados pela ditadura militar. A cerimônia ocorreu na sexta-feira, 16, no auditório da Associação Brasileira de Imprensa. “A história do meu irmão foi bem dramática. Ele morreu em 1972, mas já era perseguido desde 1964. Era funcionário do antigo Banco do Estado da Guanabara, e atuava no Sindicato dos Bancários. Bebeto fazia Economia na UFRJ. Eu estudava na extinta Faculdade Nacional de Filosofia, meu irmão mais velho se graduou pela Faculdade Nacional de Direito, minha irmã Ângela foi da Psicologia. Nossa relação com a UFRJ é muito estreita. Meu avô, inclusive, estudou na Medicina, no prédio que foi destruído pela ditadura. Eu lembrava de todo aquele clima de apreensão e pavor enquanto ouvia os depoimentos na sexta. Por tudo isso, foi muito emocionante receber a medalha de meu irmão. Ela está guardada para mostrar aos outros irmãos. Essa história é deles também”. Sônia Benevides, irmã de Luiz Alberto Benevides, estudante de Economia condecorado in memoriam.
Emoção, saudade, revolta e o desejo de fazer do Brasil um país justo foram sentimentos comuns a quem esteve na última sexta-feira (16) na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) para participar do ato “Lembrar para Não Esquecer”, uma parceria entre a UFRJ e a ABI que reverenciou as vítimas da ditadura militar instaurada no país há 60 anos. “É um orgulho e uma emoção estar aqui promovendo essa celebração à vida, homenageando nossos heróis”, disse o reitor Roberto Medronho na abertura do evento. “A UFRJ foi violentada de muitas formas”, lamentou o professor Hélio de Mattos, chefe de gabinete da reitoria e idealizador da atividade. “Estudantes foram assassinados, muitos outros foram brutalmente torturados, presos. A PM invadiu a Praia Vermelha, quebrou laboratórios. O prédio da Faculdade de Medicina foi destruído e a Faculdade Nacional de Filosofia foi extinta”, lembrou o professor. Num dos momentos mais emocionantes, o reitor leu a lista dos 25 estudantes e professores da UFRJ mortos e desaparecidos e entregou a familiares a Medalha Minerva do Mérito Acadêmico. A AdUFRJ foi representada pelas professoras Nedir do Espirito Santo e Veronica Damasceno. O Sintufrj e o DCE Mário Prata também participaram da atividade. Veja abaixo alguns depoimentos marcantes.
Gilberto Barbosa Domont
Professor emérito da UFRJ:
Eu não conheço nenhuma escola no mundo que tenha vivido 25 anos com a intensidade que a Faculdade Nacional de Filosofia viveu. Ela foi fundada durante uma ditadura, em 1939, e foi extinta por outra ditadura. Uma escola que viveu entre ditaduras. Obviamente os ideais eram coisas muito vivas nos estudantes da universidade. Com quem a gente convivia? Os professores Manuel Bandeira em Letras, César Lattes em Física, João Cardoso em Química, Maria Yeda Linhares em História, Anísio Teixeira em Educação, e por aí vai. Tive a sorte de ser aluno do Anísio Teixeira. Eram os ideais mais nobres que os alunos vivenciavam com seus professores. A faculdade começou com 11 cursos, e quando foi fechada ela tinha 23 cursos, com cerca de 250 professores. Quando a faculdade fechou ela deu origem aos institutos de Química, Biologia, Matemática, Geociências, Física, à Faculdade de Educação. Tudo isso resultou do fechamento da Faculdade Nacional de Filosofia. Tivemos um tempo de ouro, 25 anos dourados. A UFRJ tem 232 anos, 40% da vida do país. A UFRJ ajudou a construir esse país. Quando se fala da UFRJ não se fala de uma universidade qualquer, ela tem a história toda da nação por trás dela. E o que a Filosofia construiu em 25 anos? Uma contribuição inestimável ao país. A partir de 1963 vivemos outro tempo, o dos cassetetes. Saíamos nós, jovens professores e alunos, em passeatas pelo Centro do Rio, tentando mobilizar a população, e a pancadaria comia solta. E houve o tempo de chumbo. Uma das cenas mais lindas que já vi na vida foi a ameaça de invasão do prédio da Faculdade Nacional de Filosofia, ali no Centro. Descemos as mesas e cadeiras de todas as salas e colocamos na entrada do prédio. A vanguarda da defesa eram as moças, e elas estavam todas sentadas nas mesas à frente da faculdade. E a polícia do lado de fora. Os rapazes ficaram mais atrás, na defesa da porta. A polícia não entrou, e o grito foi esse: Aqui só entra com vestibular. Mas os anos de chumbo não são só figura de retórica. Foram balas de chumbo que mataram nossos colegas, nossos alunos. Nós sobrevivemos para poder contar. Não podemos deixar de nos indignar contra a violência, contra a pobreza, pela liberdade, pela vida”.
Maria Lucia Teixeira Werneck Vianna
Professora aposentada da UFRJ e uma das 19 estudantes expulsas da universidade pela ditadura militar:
Sou professora aposentada da UFRJ, depois de quase 40 anos de trabalho. Fui aluna da UFRJ na época braba, no período do golpe. O título desse evento — “Lembrar para não esquecer” — é super importante. Porque nós temos que lembrar o que foi realmente a ditadura, não só do ponto de vista político. Em relação a isso, eu e muitos amigos meus, meu marido, meu pai, meu irmão, meus filhos todos fomos vítimas da luta contra a ditadura. Mas temos que lembrar também o que representou a ditadura, o autoritarismo para a vida cotidiana das pessoas. Mesmo para aquelas que não militaram, mas que tinham uma posição contrária ao autoritarismo, a vida foi muito ruim, muito limitada. A gente tinha que se mudar de vez em quando, não podíamos ter livros, enfim, o ir e vir estava de certa forma prejudicado. A relação com os filhos, a educação dos filhos, foi tudo muito difícil. No meu caso, particularmente, minha família foi muito atingida. Temos que lembrar para que isso não se repita. Para que as pessoas possam, mesmo divergindo, conviver de forma democrática”.
Octávio Costa
Presidente da ABI:
É com grande honra que a ABI sedia esse evento da UFRJ. Agradeço ao reitor por ter escolhido esse auditório histórico, que é um símbolo da luta democrática nesse país. A UFRJ fez um folheto com os perfis de seus 25 alunos e professores mortos pela ditadura. Confesso que fiquei muito emocionado porque são todos eles da minha geração. Alguns nasceram em 1947, 1948, alguns foram do Pedro II, da Faculdade Nacional de Direito. Eu fui aluno do Pedro II e me formei na antiga Faculdade Nacional de Direito. Sou de 1950, entrei na FND em 1970, no auge da brutalidade, das violências do regime militar. O regime que torturou e matou esses jovens, todos na faixa de 25, 26, 27 anos. Jovens que sonhavam com um Brasil maior, mais justo. Alguns sonhavam com um Brasil socialista. Foram barbaramente assassinados. Um dos perfis é de Ana Maria Nacinovic, que foi morta a tiros num restaurante de São Paulo e teve seu corpo já morto espancado na frente de populares. Ou Stuart Angel, que teve sua boca colada num Jipe da Aeronáutica. Eles não tiveram a condição que nós tivemos, de seguir a nossa vida. Estamos aqui hoje, todos com cabelos brancos, em torno de 70, 80 anos, como sobreviventes da barbárie. E eles não tiveram essa chance. Eu choro por eles, tenho uma dor profunda por eles. Não podemos recuperar a vida deles, o que podemos fazer é honrar a memória deles, e esse evento faz parte disso. Honrar a memória deles é acreditar num país democrático, livre e justo socialmente. Esse o país que eles queriam, com o qual sonhavam, e temos obrigação de levar isso adiante. Que nossos jovens tenham como exemplo esses jovens que lutaram contra a ditadura no Brasil. Tortura nunca mais, democracia sempre”.
Nedir do Espirito Santo
Vice-presidente da AdUFRJ:
É difícil agora depois de tantas palavras ditas aqui a gente falar sobre a importância desse evento. Parabenizo muito a organização pela realização da atividade. Eu queria lembrar algumas coisas, porque eu fui estudante em 1972, na UFF. Nós tínhamos na universidade pessoas infiltradas. Não podia existir grupo de mais de três pessoas conversando. Lembram disso? Não podia! Nós éramos perseguidos. Eu me lembro que eu fui monitora e depois, logo que eu me formei, você podia contratar professores colaboradores. Então, eu fui contratada como professora colaboradora. Eu também fui presidente de diretório. Logo que me tornei presidente do Diretório Acadêmico, havia carro da Polícia Federal na frente da minha casa. Sabe o que eles fizeram para conter os diretórios e para que muitas universidades não tivessem diretório? Eles colocaram como condição para ser presidente não ter reprovação. Vocês lembram disso? Era aquela forma indireta de dizer ‘pode, desde que...’ Eu fiquei espantada com o que estava acontecendo. Eu trabalhava e estudava como sempre fiz na minha vida. Saía às 5 da manhã para trabalhar, tinha um carro da Polícia Federal na frente da minha porta. Isso durou um tempo. Depois, quando eu fui contratada como professora colaboradora, isso em 1977, eu tive que tirar uma coisa que se chamava Atestado de Idoneidade Moral. Lembram disso? Nós tínhamos que ir ao DOPS, que era um ambiente de tortura do Rio de Janeiro. Também tinha o quartel da Polícia Militar, lá na Barão de Mesquita. Horrores aconteciam ali e nós tínhamos que tirar o documento naqueles locais. Ou seja, você era uma pessoa indesejada pelo governo militar a menos que você provasse que não era, através desse documento. Não era atestado de bons antecedentes, não gente. Muitas coisas ainda estão em dívida e realmente não há como ter anistia (para os torturadores). Famílias foram destruídas, vidas foram destruídas. Banalizar a vida é a pior coisa que existe em qualquer circunstância. Num regime desses, o conhecimento incomoda. A grandeza da UFRJ incomodava e nós vimos aqui muitos episódios de perseguição à UFRJ. Recentemente, a última coisa que aconteceu foi esse contingenciamento, esse roubo. A UFRJ já tinha feito empenho do valor prometido pelo governo nós trouxemos aqui um documento que a AdUFRJ preparou. O objetivo é colher assinatura dos professores e apoiadores para o descontingenciamento desses recursos. Isso é muito sério. Convidamos os colegas para assinarem aqui na saída. Muito obrigado por essa oportunidade de falar aqui e aguardo a assinatura de vocês.