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ENTREVISTA I JORGE RICARDO SANTOS GONÇALVES, PROFESSOR DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO

WhatsApp Image 2024 05 03 at 20.01.02Foto: Alessandro CostaNa assembleia da AdUFRJ do último dia 26 de abril, um dos depoimentos mais contundentes foi o do professor Jorge Ricardo Santos Gonçalves, da Faculdade de Educação. A propósito dos 60 anos do golpe de 1964, Jorge Ricardo lembrou a luta contra a ditadura e defendeu que a data seja sempre lembrada pelos que defendem a democracia. “Não podemos esquecer 1964, para que nunca mais aconteça”. Poucas pessoas poderiam dizer isso com mais autoridade. Preso pelo temido DOI-CODI aos 21 anos, ainda estudante, Jorge Ricardo foi torturado nos porões da ditadura, enquadrado pela Lei de Segurança Nacional, e encarcerado em um presídio de Minas Gerais. Hoje, aos 72 anos e com quatro filhos, carrega sequelas das violências que sofreu, segue na luta pela democracia e diz que a ditadura lhe tirou alguns anos da juventude, mas lhe deu “de presente” o ofício de professor. Conheça um pouco da história desse bom e velho combatente.

Jornal da Adufrj - Como foi a sua vida antes de entrar na militância política?
Jorge Ricardo -
Nasci em Aracaju em 1952, e vim com 5 anos para o Rio de Janeiro com meus pais, que eram funcionários do Banco do Brasil, e minha irmã. Sempre estudei em escolas públicas municipais e estaduais do Rio. Entrei na PUC e, no segundo ano de faculdade, ingressei no movimento estudantil. Eu escolhi a PUC porque a UFRJ naquela época, em 1970, estava quase sem professores, muitos haviam sido cassados. E alguns desses cassados foram dar aulas na PUC, como o saudoso Manoel Maurício de Albuquerque, de quem fui aluno e amigo.

O que o levou a participar do movimento estudantil?
Inicialmente foi evitar que a Autoestrada Lagoa-Barra passasse por dentro da PUC, como previsto no projeto inicial. E o movimento foi vitorioso. A área da PUC foi preservada. Em seguida, veio a comemoração dos 50 anos da Semana de Arte de 1922 na PUC, com a participação de várias lideranças já então perseguidas pela polícia, como David Capistrano Filho.

Sua trajetória na militância começou na Ação Popular Marxista Leninista, a AP. Por que essa opção?
Fui vice-presidente do Centro Acadêmico Roquette-Pinto, da Sociologia e da Economia, e logo passei a militar na AP. Era uma organização de esquerda, contra a ditadura e a favor da libertação da população. Um dos participantes era o Betinho. No início de 1972, eu me vi numa situação muito séria. Meus companheiros de movimento ligados à Polop (Organização Revolucionária Marxista Política Operária) e ao PCdoB foram presos e eu me vi praticamente sozinho na PUC. Continuei fazendo panfletos rodados em mimeógrafo denunciando as prisões.

E como foi a sua prisão?
Fiquei muito exposto na PUC. E fui para a UFMG cursar Ciências Sociais e continuar a militância. Em meados de 1973, comecei a ser seguido, fugi para o Rio Grande do Sul, e depois para o Rio. Quando voltei a Belo Horizonte, fui preso em 21 de dezembro de 1973 por agentes do DOI-CODI.

Começou aí seu calvário...
Fui massacrado. Fiquei um mês no DOI-CODI de BH sendo torturado para entregar meus amigos. Chegaram a me levar para um terreno baldio, à noite, de olhos vendados, e simularam um fuzilamento. Depois me trouxeram para o DOI-CODI do Rio de Janeiro, ali no quartel da Polícia do Exército da Rua Barão de Mesquita, na Tijuca, onde fui torturado por mais um mês. Como não conseguiram que eu entregasse nenhum companheiro, me mandaram para São Paulo, fui parar nas mãos da temível Oban, do Brilhante Ustra e outros torturadores.

A que tipo de tortura o senhor foi submetido?
Na Oban foi o pior período, eu já estava muito debilitado, e eles me quebraram todo. Pau-de-arara era sempre, tenho até hoje um problema de circulação nas pernas por conta disso. Acelerou minha artrose, já fiz duas operações. Cobra dentro de barril, afogamentos, choques de várias maneiras. Injetaram substâncias no meu sangue, até hoje tenho problemas de fígado. Devia ser o tal soro da verdade. Comigo não funcionou. Acabei assinando um depoimento reconhecendo algumas ações, negando outras. Mas não entreguei ninguém. Fui enquadrado no artigo 43 da Lei de Segurança Nacional, peguei dois anos de cadeia, por organizar agrupamento de caráter subversivo. Fui da AP todo esse tempo e, mesmo depois de ser libertado, continuei na AP.

Como foi a convivência com outros presos na cadeia?

Havia presos de várias organizações, inclusive as ditas militaristas, como a ALN e a VAR-Palmares. Fazíamos rodízio de rádios e TVs, dividíamos até comida, era um socialismo forçado. Dizem que a esquerda só se une no câncer, mas na prisão também. Era a Penitenciária Regional de Juiz de Fora. Meus pais e minha irmã me visitavam toda a semana.

Na cadeia vocês sofriam violência?
O diretor de lá gostava de mandar a gente para a solitária. Era um oficial aposentado da Polícia do Exército, conhecido como Belial, um personagem maligno do Velho Testamento. Na solitária não tinha cobertor, a gente dormia no chão, mas não era tortura. A gente só podia ler a Bíblia na cela, o que rendeu o apelido do diretor.

E depois da libertação, como você se reintegrou ao movimento?
Saí em 31 de março de 1976, como na música do Caetano, sem lenço e sem documento. Fui para a casa dos meus pais. E retornei à militância na PUC e na AP. Fiz o discurso de formatura da minha turma de Sociologia, em 1978, época da luta pela Anistia. A plateia em coro gritava “Anistia, Anistia”. Foi de arrepiar.

Depois da Anistia, em 1979, qual foi seu caminho?
Participei das primeiras reuniões para a formação do PT, ainda antes da Anistia, e defendi o fim da AP para nosso ingresso como uma ala no partido. Fui petista radical durante alguns anos. Mudei para a Vila São Luiz, em Duque de Caxias, para fazer trabalho político da AP na Baixada.

Como se aproximou do PDT?
Em 1982 eu saí do PT, questionando o caráter eleitoreiro que o partido havia tomado. Brizola tinha sido eleito governador do Rio naquele ano, eu já era professor da rede pública estadual na Baixada. Fui um dos organizadores da formulação inicial dos Cieps, em 1985, com Darcy Ribeiro. Esse projeto foi muito criticado pelo PT e pela direita. Só defendiam o projeto, além do governo do PDT no Rio, os pais dos alunos da periferia que estudavam nos Cieps.

Recentemente, o presidente Lula pediu desculpas públicas à memória de Brizola e Darcy por ter criticado os Cieps no início dos anos 1980.
Muito tardio e inócuo. Precisávamos de apoio naquela época. Era um projeto de esquerda de seriedade. Poucos políticos de esquerda investiram prioritariamente em educação pública como Brizola e Darcy. Se tivéssemos apoio naquela época, teríamos hoje um país diferente.

Lula também defendeu que não se fale mais de 1964, que isso é olhar para trás. Em seu discurso na assembleia, o senhor defendeu o contrário.
Ditadura é inaceitável. Quase entramos em um novo ciclo autoritário com o governo Bolsonaro. O Brasil precisa enquadrar as Forças Armadas dentro de um sistema democrático. Não podemos esquecer 1964, para que nunca mais aconteça.

O senhor foi um dos beneficiados pela Comissão da Anistia, em 2009, que indenizou 19 pessoas que tiveram seus direitos políticos cassados durante a ditadura. Isso reparou tudo o que sofreu?
Recebi R$ 51 mil de indenização e um pedido de desculpas do Estado brasileiro. Foi só isso. Essa comissão acabou. Talvez tenha acabado dentro desse conceito de que temos que esquecer.

Sua militância política se mantém?
Sim. Eu saí do PDT no final da vida do Brizola e fiquei sem partido durante muitos anos. No ano passado, eu me filiei ao PSOL. Sou professor da UFRJ desde 1989, sempre atuei politicamente aqui. Dou aulas para licenciatura e isso me dá um grande prazer, convivo com alunos de 26 diferentes áreas, da Letras à Geografia, da História à Matemática.

Para quem foi professor desde sempre, deve dar uma satisfação muito grande formar novos professores...
E você sabe que minha escolha de ser professor aconteceu na prisão? O diretor Belial queria que os presos políticos se integrassem aos comuns. Éramos 15 presos políticos num universo de 300 detentos. Tínhamos as seguintes opções: varrer pátios enormes, lavar latrinas nas celas, limpar a fétida cozinha ou dar aulas de Mobral aos presos analfabetos. Eu escolhi dar aulas. Nunca tinha pensado em ser professor até aquele momento. Queria ser pesquisador. Eu dava aulas usando o material do Mobral e mesclando com o método Paulo Freire.

Método Paulo Freire numa prisão da ditadura? O senhor é mesmo corajoso.
Durante alguns meses eu consegui fazer isso, mas o Belial descobriu, proibiu e me mandou para a solitária de novo (risos). Mas ficou aquela semente. Eu saí da cadeia e fui ser professor. Sem querer, além de ter roubado alguns anos da minha juventude, a ditadura me deu de presente a profissão que eu abracei a vida toda.

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