A PARTIR DA ESQUERDA: Maria Cecília, estudante da História; Maria Clara, egressa da Escola de Química; Jandir, ex-aluno da EBA; e Elizangela, formada em Terapia Ocupacional - Fotos: Fernando SouzaEra uma vez uma menina que alcançou nota suficiente no Enem para o curso de Medicina, mas escolheu a Engenharia Química. Estamos falando da talentosa Maria Clara Moreira, recém-formada na UFRJ. Sua história não é um conto de fadas qualquer. Nascida e criada na Maré, ela será laureada com o Diploma de Dignidade Acadêmica no grau “Magna Cum Laude”, concedido a alunos com coeficiente de rendimento acumulado igual ou superior a 9.
O feito é ainda maior: desde o 6° período, Maria Clara cursa concomitantemente as disciplinas do mestrado em Engenharia de Processos Químicos e Bioquímicos e pode defender sua dissertação já em março de 2025. Sim, ela fez graduação e pós simultaneamente no programa de integração promovido pela Escola de Química para alunos que se destacam em sua trajetória acadêmica. Ela não só obteve incríveis notas no início da formação superior, como alcançou o maior CR da pós: 3. O que indica que conquistou conceito A em todas as disciplinas.
Tímida, ela explica os motivos de ter escolhido a UFRJ. “Tudo levava à UFRJ. Fiz Enem na UFRJ, meus pais estudavam lá, é a instituição mais conceituada do Rio, além de ser bem perto de casa”, elenca.
Diretora da Escola de Química, fã de carteirinha da estudante e uma de suas orientadoras, a professora Fabiana Fonseca é só elogios. “Ela sempre buscou a excelência. Seu TCC é nota 10. É uma aluna dedicada, comprometida, realmente diferenciada”, afirma. “Quando vejo casos como o da Maria Clara, sinto que a universidade está no caminho certo. É um grande orgulho testemunhar essa trajetória”.
A docente acredita que a universidade, no entanto, precisa buscar outras iniciativas que valorizem o aluno que se destaca, sobretudo quando a trajetória pessoal é marcada por desafios fora da academia. “É um esforço muito grande concluir o curso com esse nível de excelência, superando todas as dificuldades de sua realidade”, diz. “A universidade precisa ter formas também diferenciadas de reconhecimento desses estudantes”.
CRIA DA MARÉ
A história inspiradora ganha contornos ainda mais emocionantes quando recuperamos o cotidiano de sua família. Maria Clara é cria da Maré. Vive com os pais e irmãs numa pequena casa da Nova Maré, uma das regiões mais conflagradas do complexo de favelas. A residência está situada a poucos metros de uma invisível e violenta linha que divide facções em disputa pelo território vizinho à Cidade Universitária. A chamada “divisa”.
Para se formar, a menina superou inúmeros obstáculos, como a violência, a falta de espaço para estudar, os poucos recursos financeiros para se manter no curso e até mesmo a falta de internet. “Foi um desafio manter a qualidade do estudo, principalmente no período da pandemia”, lembra.
A irmã, Maria Cecília Moreira, concorda. “O sinal de internet foi o que mais atrapalhou minha graduação durante a pandemia. Muitas vezes sumia ao longo do dia”. Ela também é estudante da UFRJ. Cursa licenciatura em História, sua grande paixão, e se forma no ano que vem. É estudante dedicada e muito elogiada na Iniciação Científica. Cecília havia passado para a Uerj e PUC e tinha nota para todas as federais do Rio, mas aguardou a primeira chamada da lista de espera do SiSU. “Quando passei, nem acreditei”, lembra. O sonho era cursar a mesma universidade da irmã e... dos pais.
FAMÍLIA UFRJ
Pois é, esta história, que mais parece um conto de fadas, começa com o pai das meninas, Jandir Leite Moreira. Artista autodidata, ele tinha um desejo distante de estudar na Escola de Belas Artes. O dia a dia com inúmeras limitações, inclusive financeiras, o fez adiar o sonho por décadas. “Eu olhava para essa universidade atrás da minha casa e acreditava que não era para mim. Era o que todos me diziam. Eu precisava ser honesto e trabalhar, sustentar uma família, uma casa, como faria uma universidade?”, perguntava-se. “A sociedade olha para um favelado como eu, gestado, nascido e criado no chão da favela, e decreta um destino”.
Jandir rompeu com o destino. Filho de mãe analfabeta e pai pouco escolarizado, o menino que passou a infância numa casa de dois cômodos que abrigava oito pessoas, não negou suas raízes, mas foi além delas. Matriculou-se em um curso pré-vestibular comunitário da Nova Holanda – outra favela do conjunto –, prestou o Enem em 2015 e passou para a EBA, no curso de Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas.
Como a filha mais velha, também foi laureado por finalizar a graduação com CR 9. “Ainda não sei como, mas dei conta de concluir um curso integral com excelência acadêmica, trabalhar, criar minhas artes, fazer exposições, cuidar da família. Foi quase um milagre”, orgulha-se. Ele terminou a graduação em 2019, mas ainda durante o curso ganhou dois editais da UFRJ e recebeu prêmios por exposições realizadas: uma no Parque Tecnológico e outra no prédio do Colégio Brasileiro de Altos Estudos, atual sede do Fórum de Ciência e Cultura.
O talento de Jandir está estampado nas paredes da casa, nos objetos de decoração e até num violino (de verdade) construído com garrafa pet e cabo de vassoura. Foi seu trabalho final da disciplina de teoria musical. Hoje, ele é professor substituto do Colégio Pedro II no ensino de artes e trabalha também como musicoterapeuta voltado ao tratamento de crianças do espectro autista. Está em sua segunda especialização. “Depois da UFRJ, nunca mais parei de estudar”, comemora.ARTISTA DA MARÉ Jandir exibe o violino feito de materiais reciclados
A educação transforma e inspira. A esposa de Jandir, Elizangela Moreira, também atravessou os três quilômetros que separam sua casa do campus da UFRJ. Ao ver que o marido passou para a faculdade, Elizangela resolveu fazer o Enem. Estudou sozinha e foi aprovada no curso de Terapia Ocupacional da Faculdade de Medicina da UFRJ.
“Nem nos meus melhores sonhos imaginei que teria uma graduação”, conta emocionada, lembrando do dia em que viu seu nome entre os aprovados.
A reação foi o choro incontrolável. “Eu lembrei de toda a minha trajetória. Olhava da Maré para o prédio da UFRJ e era tão distante”, conta, sem ostentar a enorme ponte que construiu entre seu passado e seu futuro.
Ficaram no passado as vozes que tentaram interromper a trajetória virtuosa da família Moreira. “Tive uma professora nos anos 90 que dizia para a minha turma que a universidade pública não era para o pobre, que a gente nunca estaria lá”, lembra Elizangela.
Ela mostrou o contrário de sua insensível professora. Está graduada desde 2021 e desenvolve terapias para crianças do espectro autista. “É incrível poder trabalhar com o que a gente ama”.
Num certo momento, pai, mãe e filha mais velha cursavam a UFRJ ao mesmo tempo. Depois, mãe e filhas.“A gente já se encontrou para almoçar no bandejão”, lembra Jandir. “Muitas vezes fomos juntos também”, diz Elizangela. “Em outros momentos, a gente se encontrava no ônibus”, completa Maria Clara.
A UNIVERSIDADE PÚBLICA MUDA VIDAS
DE BECA Jandir foi o primeiro a se formar (à esquerda), em 2019. Em 2021, foi a vez de Elizangela (à direita). Maria Clara colou grau no último 27 de setembro (ao centro) - Fotos: Acervo de famíliaOs quatro filhos de Minerva não escondem o orgulho de pertencer à comunidade acadêmica da maior universidade federal do país. E contam como a universidade é capaz de mudar a vida de seus alunos. “A UFRJ foi tudo nas nossas vidas. A gente aprendeu sobre tantas coisas! Mudou completamente a nossa realidade. Hoje conseguimos realizar a primeira reforma na nossa casa em mais de 20 anos”, conta Jandir. “A gente até tem o sonho de viver uma coisa fora (da Maré), mas só agora nossa vida está começando a se organizar”.
O conjunto de casas onde a família mora foi construído em 1995 para abrigar moradores das palafitas. “Essa região era toda de palafitas. Vimos o desenvolvimento da comunidade até os dias atuais e estamos caminhando para mudar nossa realidade”, analisa Elizangela. “Assim que me formei já estava trabalhando na minha área, não fiquei mais desempregada. Nunca imaginei que essa realidade louca e inalcançável seria a minha história”, diz.
Mesmo antes de acessar a graduação, os pais de três meninas – a caçula Maria Laura cursa o ensino médio – desejavam que suas filhas trilhassem caminhos naturais até a universidade. A única chance seria prepará-las para enfrentar uma disputada prova que concedia dez bolsas a uma rede de escolas particulares. “Elas precisavam estar prontas para essa prova aos 4 anos de idade”, lembra Jandir. Para isso, eles alfabetizaram as três em casa na primeira infância. Todas elas conseguiram a bolsa integral no colégio privado da Maré.
Com pais formados ou em vias de se formar, o caminho da universidade foi ainda mais natural para as meninas. “Disputamos o Enem pela ampla concorrência porque fomos bolsistas de um colégio privado, mas desde cedo nos preparamos para esse momento”, conta Maria Cecília. “Quando comecei, meu pai estava concluindo a graduação e minha mãe estava no meio da faculdade”, lembra Maria Clara. “Era incrível”.
O sentimento dos pais é de orgulho e dever cumprido. “Eu só choro de alegria. Era um sonho que nós tínhamos, mas não imaginava que fosse acontecer tudo de uma forma tão brilhante”, suspira Elizangela. “A gente mora numa região infelizmente marcada por muitas mães que choram de tristeza. Quantos ficaram para trás? “, lamenta. “Então, quero que nossa história de alguma forma inspire outras famílias daqui”, diz. “Nós não temos muitas coisas materiais para dar, então nossa herança para elas é a educação”, conclui Jandir.