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WhatsApp Image 2024 10 11 at 18.39.04Silvana Sá e Renan Fernandes

O ano de 2024 já está marcado como o que mais registrou denúncias de violência política de gênero no Brasil. Há casos em todos os estados e também no Distrito Federal, com destaque para a Região Sudeste, que concentra quase 40% das agressões. Para se ter uma ideia, o Disque 100, serviço do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, recebeu este ano 584 denúncias de violência política contra mulheres. Em 2022, ano também eleitoral, esse número foi de 354 denúncias.
A intimidação e a ameaça são outras formas tristemente comuns de violência a mulheres na política. Primeira deputada trans da Alerj, Dani Balbi (PcdoB-RJ) denunciou publicamente, no dia 3 de outubro, uma ameaça recebida por e-mail anônimo. A agressora (supostamente uma mulher branca e cisgênero), além de dizer que atentaria contra a vida da parlamentar, proferiu insultos transfóbicos.

EXPLOSÃO DE CASOS
Na primeira edição da pesquisa “A violência política e eleitoral no Brasil”, das ONGs Terra de Direitos e Justiça Global, lançada em 2020, as mulheres ocupavam 13% das vagas nas casas legislativas municipal, estadual e federal, mas representavam 31% das vítimas de ameaça e 76% das vítimas de ofensas.
Já na segunda edição da pesquisa, em 2022, o percentual de mulheres nos espaços legislativos subiu para 16%. O aumento tímido da participação feminina foi acompanhado de um crescimento substancial na violência. As mulheres foram 56% das vítimas de ameaças e 75% das vítimas de ofensas. Mulheres negras foram vítimas de 23% dos casos de violência política no país.WhatsApp Image 2024 10 11 at 18.29.50
Os dados preliminares já divulgados pelas ONGs da pesquisa que será lançada este ano também apontam o agravamento da violência política de gênero. Se na edição de 2022 as mulheres foram vítimas de 42% dos casos de violência, a edição de 2024 indica um crescimento para 46% do total de casos.
Com 518 ocorrências, o ano de 2024 se mostra como o mais violento da série histórica produzida pelas duas organizações.

NÃO SÃO SÓ NÚMEROS
Por trás dos dados há muitas histórias. Tristes exemplos de como uma democracia não deve se comportar. O Ministério Público Federal acompanha 11 casos de violência a candidatas que disputaram a eleição deste ano. O mais grave, um estupro contra Lili Rodrigues, do PSOL, candidata a vice-prefeita de Porto Velho. Ela foi violentada a dois dias do pleito. A vítima registrou boletim de ocorrência e realizou exames e procedimentos médicos, incluindo corpo de delito e profilaxia após violência sexual. A Polícia Civil investiga o crime.
A poucos dias do primeiro turno, a vereadora Tainá de Paula (PT-RJ), então candidata à reeleição, sofreu um atentado a tiros em Vila Isabel, Zona Norte do Rio. Dois homens armados dispararam duas vezes contra o veículo em que a parlamentar e sua equipe estavam. Não houve feridos, pois o carro era blindado. A Polícia Civil afirmou em nota que descarta motivação política, mas segue investigando o caso. Tainá foi reeleita.
Outra parlamentar que enfrenta cotidianamente a violência política é a deputada estadual Marina do MST (PT-RJ). O episódio mais emblemático aconteceu em agosto do ano passado. Enquanto tentava realizar uma plenária de prestação de contas de seu mandato em Lumiar, em Nova Friburgo (RJ), a deputada sofreu ameaças e agressões físicas e morais. “Eu me senti violentada, ofendida, discriminada. Se eu não fosse do movimento social, se eu não fosse mulher, se eu não fosse negra, eu não teria sofrido aquele grau de violência”, destaca a deputada. O Ministério Público do Estado denunciou oito pessoas envolvidas nas agressões.
“A violência de gênero na política é quase uma questão cultural, tão forte é o machismo e o patriarcado do nosso país”, avalia Marina. “É um tema que devemos enfrentar, a começar pelos espaços nos quais participamos, na academia, nos partidos políticos,e também nos movimentos sociais, já que não se trata de uma exclusividade da extrema direita. A esquerda também não está livre disso, pois a violência de gênero é algo estrutural da nossa sociedade”, afirma.
WhatsApp Image 2024 10 11 at 19.14.14Vice-presidenta da AdUFRJ, a professora Nedir do Espirito Santo viveu na pele uma situação de violência política de gênero num espaço de articulação de esquerda. No 67º Conad do Andes, a docente foi a única pessoa nominalmente citada em um texto. Apesar de mencionada caluniosamente, a docente não teve direito à defesa. “O Conad debate temas políticos do nosso sindicato nacional. Ao invés de o texto citar a institucionalidade, citou nominalmente uma pessoa, de forma caluniosa e descontextualizada”, lamenta Nedir.
“Eu fui acusada de marginalizar o movimento estudantil. Covardemente, nenhuma das pessoas que escreveu o texto foi defendê-lo no plenário, de forma que eu não pude me defender”, critica a professora. “Fui silenciada. Como uma instituição permite que uma pessoa seja caluniada e não dá voz para que ela se explique?”, questiona.

POR QUE ACONTECE
Presidenta da AdUFRJ e pesquisadora do tema, a cientista política Mayra Goulart, professora do IFCS, afirma que os inúmeros casos de violência política de gênero no Brasil têm uma única raiz: o patriarcado. “Esse sistema social e político funciona para manter as hierarquias consolidadas. Essas hierarquias se estruturam a partir de relações econômicas, mas que têm clivagens de gênero e raça”, explica. “No topo dessa hierarquia está o homem branco, hétero e cis de classe alta. Tudo o que discrepa dessa hegemonia sofre violência, porque ameaça prerrogativas estabelecidas”, analisa a pesquisadora. “Quanto mais afastada desse perfil hegemônico, mais agressões a pessoa sofrerá”.
Mayra Goulart também acredita que o fortalecimento de movimentos conservadores de extrema direita contribui para que mais mulheres sofram mais violência política. “O conservadorismo, como o próprio nome diz, prega a manutenção, a conservação do patriarcado. Então, quanto mais ele é aceito e reivindicado por pessoas e grupos, mais aceitas – e até mesmo estimuladas – são essas violências”, avalia Mayra.
Doutoranda do Centro de Estudos Interamericanos da Universidade de Bielefeld, na Alemanha, Lívia de Souza Lima pesquisa a atuação de mulheres negras na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj). Durante suas observações, ela compreendeu que precisaria falar sobre violência política de gênero e raça. “Não foi algo que era prévio, surgiu a partir das observações, do que essas mulheres enfrentam exercendo seus mandatos”, afirma.
Para a pesquisadora, é preciso compreender a razão de um corpo ser previamente sujeito a ataques. “A violência política de gênero é um contíguo da violência de gênero. Há uma condição subalternizada da mulher na sociedade e a política, como espaço de poder, vai ser refratária a diversos grupos considerados minoritários ou marginalizados”, avalia. “A violência, então, serve para barrar a expansão desses grupos”.

DESLEGITIMAÇÃO
De acordo com Lívia, homens e mulheres sofrem violência política, mas a forma como essa violência se manifesta vai depender do gênero da pessoa agredida. Em geral, mulheres são sempre deslegitimadas e atacadas com desqualificações pessoais. “Por exemplo, mulheres negras são excluídas de espaços por onde circulam parlamentares homens, porque há um imaginário social que diz que aquele não é o lugar delas”, avalia. “Mulheres têm sua capacidade técnica questionada, são silenciadas, são colocadas como arrogantes quando reivindicam sua capacidade técnica”, exemplifica.
O exemplo maior da violência política de gênero no Brasil é o assassinato da vereadora Marielle Franco, em 2018. “Por que o corpo da Marielle se torna matável?”, questiona Lívia. “Quais são os cálculos políticos que levam ao entendimento de que aquele assassinato terá as mínimas consequências possíveis?”.
Deputada estadual e pesquisadora, Renata Souza (PSOL) é ex-assessora de Marielle e foi quem primeiro enxergou que o assassinato da parlamentar tinha relação direta com seu gênero. Foi quando, ainda em 2018, ela cunhou o termo ‘feminicídio político’. “A escalada dessa violência de gênero é justamente o feminicídio político, é o grau máximo dessa violência”, afirma a autora do termo. “Por que as mulheres na política são mortas? Pela sua condição de gênero atravessada por outras questões sociais”, explica Renata. “E não falo só da política institucional, mas de todos os espaços em que mulheres exerçam política”, diz.
Ela dá alguns exemplos. A juíza Patrícia Acioli, assassinada em 2011, é um deles. “O fato de ela ser mulher criou essa condição institucional de estar sem escolta”, diz. Mãe Bernardete, liderança quilombola na Bahia, é outra. “Foi morta fazendo a luta pela terra, na frente de seus netos, com tiro no rosto que configura o ódio, a misoginia”.
A parlamentar também é vítima de violência política de gênero desde antes de assumir seu primeiro mandato como deputada estadual, em 2018. “No dia seguinte à eleição, as minhas redes foram atacadas. As pessoas me chamavam de macaca e diziam que eu teria o mesmo fim de Marielle”, conta. “Ali, eu entendi que seria preciso pensar na minha segurança pessoal para conseguir assumir o mandato”, lembra. “Tudo isso, não tenho dúvidas,é um atentado à democracia”.

ALTERNATIVAS
Não há segredo para combater a violência de gênero. O caminho passa, necessariamente, por conscientização, educação e judicialização com punição. “Uma é a via institucional, com punição para aquilo que é crime, e criação de regras que estimulem representação de minorias”, aponta Mayra Goulart. “A segunda via é a conscientização, com criação de processos de comunicação, diálogo e educação sobre a importância de superar o patriarcado”, conclui.
Lívia Souza concorda. “O marco legislativo é muito importante, pois ajuda que o tema seja tratado com institucionalidade. Mas não pode haver só o punitivismo. É preciso visibilizar o problema e ter um protocolo de enfrentamento, que ainda não conseguimos construir”, diz. “Precisamos entender o status da violência política de fato. A política é conflito, mas é preciso estabelecer os limites sobre o que é esperado na democracia e o que devemos considerar violência na política”.

WhatsApp Image 2024 10 11 at 20.12.32DEPOIMENTO I
MARINA DO MST
DEPUTADA ESTADUAL (PT)

A violência política de gênero é um tema muito sério e importante de ser debatido pela academia, por partidos políticos e também pelos movimentos sociais, que é minha origem. É um tema que devemos enfrentar com organização popular, com formação política em todas as instâncias, sobretudo nos partidos políticos, inclusive os de esquerda, que também não estão livres disso, exatamente porque se trata de algo estrutural da nossa sociedade.
Acredito que há uma vinculação direta entre o aumento da violência com o fortalecimento da extrema direita nas Casas Legislativas. Houve um pequeno aumento do percentual de mulheres nas candidaturas e nos espaços legislativos, o que é um avanço importante, mas é preciso haver um preparo para lidar com o aumento da violência.
Eu fui atacada numa atividade de prestação de contas do mandato, em Lumiar. Fui agredida, impedida de exercer meu direito parlamentar de dialogar com a população. Não reconheceram meu papel. Também não há o reconhecimento nas casas legislativas dessas mulheres que estão exercendo seu mandato.
Eu acho que há um aumento dessa violência com o crescimento da extrema direita, mas há também reação. Surge uma série de movimentos para que haja denúncias e para que seja feita justiça.
Eu me senti realmente violentada, mas coletivamente nós enfrentamos os agressores e a plenária aconteceu. No pátio da polícia, mas aconteceu.
Eu me senti ofendida, atacada, violentada e discriminada. Se eu não fosse do movimento social, se eu não fosse mulher, se eu não fosse negra, eu não teria sofrido aquele grau de violência. Não tenho lugar para o ódio no meu coração, mas exijo que seja feita a justiça. O processo está andando. Alguns já vão pagar cestas básicas e oito réus vão a julgamento.
Infelizmente, vivemos um rebaixamento da política na Alerj e em outros espaços legislativos. Homens e mulheres parlamentares que têm em seus projetos o desejo de fazer política de fato são atacados. Estou vindo do plenário. Havia na pauta um projeto meu para que o governo do estado possa desenvolver políticas de acolhimento para pessoas vítimas de trabalho análogo à escravidão, com acesso à saúde, habitação. São poucas as vezes em que há um projeto importante na pauta. A saída para esse duro cenário deve ser coletiva e passar por punição e educação.

WhatsApp Image 2024 10 11 at 20.12.33DEPOIMENTO I
RENATA SOUZA
DEPUTADA ESTADUAL (PSOL)

Ser da favela causa um nível de criminalização muito violento, que se alia à misoginia e ao racismo. São elementos que se agrupam e levam a sociedade quase que referendar que uma mulher da favela está necessariamente ligada ao crime. E isso aconteceu com a Marielle. Houve até o caso de uma desembargadora que tentou associá-la a facções criminosas.
Eu fui vítima de violência de gênero no dia seguinte das eleições de 2018. Eu vinha de uma situação de chefe de gabinete da Marielle e fui eleita pra o primeiro mandato. Todas as minhas redes sociais foram atacadas. O número de seguidores aumentou de maneira absurda e aproveitaram para me atacar. As pessoas me chamavam de macaca e diziam que eu teria o mesmo fim de Marielle. Ali eu percebi que teria que pensar na minha segurança pessoal para conseguir assumir o mandato. A violência de gênero, portanto, tem recorte também de raça e de classe.
Infelizmente, sofri violência de gênero inclusive no plenário da Alerj, com injúrias e até mesmo intimidação física para me calar ao microfone. Tudo isso diante das câmeras.
Tive que me mudar muitas vezes. As últimas ameaças que recebi continham dados sensíveis e confidenciais, com nomes e informações pessoais da minha família. É muito sórdido!
A escalada da violência de gênero é justamente o feminicídio político, que é o grau máximo dessa violência. Por que as mulheres da política são mortas? Pela sua condição de gênero atravessada por outras questões sociais. E não falo só da política institucional, mas de todos os espaços em que mulheres exerçam política. A juíza Patrícia Acioli está incluída nesse conceito. Ela enfrentou o embrião da milícia de São Gonçalo e o fato de ser mulher criou essa condição institucional de ela estar sem escolta. Ela fazia parte de uma estrutura que deveria protegê-la e, ainda assim, teve sua segurança negligenciada. Mãe Bernardete, que foi morta fazendo a luta pela terra na Bahia, é outro exemplo. Foi assassinada na frente de seus netos, com tiro no rosto, que configura todo esse ódio, essa misoginia. Irmã Dorothy Stang, outro exemplo. Todas mulheres envolvidas com a transformação social, com a mudança significativa da sociedade. Lideranças com o poder de mudar a realidade local a partir de seu trabalho diário. Todas defensoras dos direitos humanos.
Ao olhar para esses casos, quase todos são de disputa por território, o que remonta a um Brasil que não resolveu sua questão agrária. E que está ligado, segundo ao que apontam as investigações, ao próprio caso da Marielle. Esse é um grande tema por trás da violência política de gênero. Muitas dessas lideranças agrárias são mulheres. Esse conceito do feminicídio político também se consolida por essa via. Ameaçar os filhos é outra face dessa violência direcionada às mulheres. A Mãe Bernardete teve um filho assassinado antes de ela própria ser executada.
O Brasil não tem nem 20% de participação feminina na política. O patriarcado impede que essas mulheres exerçam plenamente seu papel político. Mesmo entre as que assumem seus mandatos, a maior parte vem de uma herança patriarcal. Estão lá por conta de seus maridos, de seus pais, de seus avôs. Nós, que não herdamos essa estrutura, acabamos sendo mais vítimas de violência política de gênero. Quando uma mulher preta e favelada acessa espaços de poder, ela “ousa demais” dentro dessa lógica patriarcal. Tudo isso, não tenho dúvidas, é um atentado à democracia.

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