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Viva a UFRJ! O aniversário de 100 anos da primeira universidade federal do país, no dia 7, reservou aos convidados debates, mostras da produção acadêmica de cada Centro e campus avançado, homenagens e muita, muita música de qualidade.
Um concerto comemorativo da orquestra sinfônica da Escola de Música abriu os festejos. Durante 50 minutos, obras de mestres que passaram pela Casa encantaram a audiência. A gravação, que obedeceu aos cuidados sanitários exigidos em tempos de pandemia, no imponente Salão Leopoldo Miguez da Escola, tornou o conjunto da apresentação ainda mais bonito. E, entre uma canção e outra, um pouquinho da história do curso dava a dimensão do gigantesco “peso” da universidade também na Cultura.
“Nossa história é o seu futuro”, aliás, foi a frase escolhida para conduzir a celebração que durou dois dias. A reitora, professora Denise Pires de Carvalho, contemplou a trajetória de pioneirismo da maior universidade federal do Brasil sem se descolar do compromisso social com as questões do presente e do amanhã. Denise afirmou a relevância da ciência, arte e cultura. E defendeu o financiamento público para um país mais equânime. “As metas para a Educação devem ser minimamente alcançadas”, disse durante a transmissão ao vivo.
O tom político da mensagem da reitora foi claro. “É inconteste que as nações desenvolvidas dependem da presença de universidades que exerçam papel decisivo na finalidade de torná-las protagonistas de seu próprio destino”, afirmou, destacando ainda que “no mundo moderno, quanto maior é o número de universidades de pesquisa, mais pujante é o desenvolvimento socioeconômico do país”.
Em uma “rápida, mas intensa viagem” pela história da universidade – como a própria Denise descreveu – nomes como Anísio Teixeira, Eloisa Mano, José Leite Lopes, Carlos Chagas Filho, Alberto Coimbra, Josué de Castro, Edgard Roquette-Pinto, Conceição Evaristo, Marco Aurélio Mello foram homenageados. “Grandes intelectuais que se graduaram na nossa instituição”, registrou a magnífica.
Emocionada, a reitora fez referência a todos os níveis de produção de conhecimento da universidade: “de excelência, desde a educação infantil, até a pós-graduação, pesquisa e inovação”. E exaltou a capilaridade social que a instituição assumiu ao longo dos anos, alcançando um amplo espectro de demandas da sociedade, desde a formação de professores com as licenciaturas até a sinergia com a indústria e a inovação.
O futuro, segundo a magnífica, também encontra a marca da UFRJ graças a um “ecossistema” favorável ao “fortalecimento de mais cursos de áreas de fronteira do conhecimento”, como a Nanotecnologia. “Neste ambiente diverso, intelectualmente muito rico, ocorreu o crescimento e desenvolvimento da UFRJ”, destacou Denise, “baseado na tradicional indissociabilidade entre as atividades de ensino, pesquisa e extensão”.
Ainda pela administração central, o vice-reitor Carlos Frederico Leão Rocha projetou uma UFRJ para os próximos “vinte, cinquenta ou cem anos”, elencando cinco pilares: manter-se como uma casa de conhecimento, manter-se sem tabus, manter-se inovadora (“como tem feito em relação à Covid-19”), manter-se comprometida com a democratização de seu acesso e manter-se livre e independente. “É independência ou morte”, finalizou com bom humor.
DOCUMENTÁRIO
A projeção do documentário “Centenária: a Universidade do Brasil entre duas pandemias”, realizado pelo Fórum de Ciência e Cultura, foi outro ponto alto da programação. O curta de 18 minutos, disponível no Youtube, ganhou a narração da atriz Zezé Polessa.
Autoridades como o ministro da Educação, Milton Ribeiro, ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações, Marcos Pontes, presidente da Faperj, Jerson Lima Silva, presidente da Academia Brasileira de Ciência (ABC), Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), Marco Lucchesi, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Ildeu Moreira, presidente da Fundação Oswaldo Cruz, Nísia Trindade, enviaram vídeos prestando homenagens aos 100 anos da UFRJ. Assim como diversos reitores.
E houve mais música no final. A canção “Ciência e Arte”, composta por Cartola e Carlos Cachaça para a Mangueira, em 1947, fechou o evento. Interpretada por diversos artistas, ela diz no seu início: “Tu és meu Brasil em toda parte/Quer na ciência ou na arte/Portentoso e altaneiro”. O samba cita o físico César Lattes, que ganhou notoriedade no Brasil e no mundo pela co-identificação da partícula atômica mesón pi no mesmo ano. Mas parece que a homenagem foi escrita para a UFRJ.
NOTAS
Presidente da Fiocruz recebe título
O encerramento do segundo dia de comemorações do centenário ficou reservado para a entrega de títulos honoríficos da UFRJ aprovados pelo Conselho Universitário. Presidente da Fiocruz, Nísia Trindade foi uma das homenageadas. “Quanta emoção receber o título de Professora Honoris Causa desta Casa de Minerva, a deusa grega da ciência, das artes e dos ofícios”. A docente chamou atenção para o simbolismo da solenidade: ela, a primeira presidente da Fiocruz nos 120 anos da instituição recebendo o título da primeira reitora da UFRJ em seus 100 anos.
Noca, o mais novo Doutor Honoris Causa da UFRJ
Noca da Portela, o baluarte do samba, recebeu o título de Doutor Honoris Causa. “Estou com os olhos cheios de lágrimas, mas feliz da vida. Muito obrigado de todo o coração”, disse o compositor. A sessão contou com outro Doutor Honoris Causa, Martinho da Vila: “A universidade homenageando você está homenageando o samba. Tenho certeza de que todos os sambistas se sentem um pouco homenageados junto com você”, disse.
Técnicos homenageados
A UFRJ promoveu uma homenagem especial a todos os servidores técnicos-administrativos na figura de dois representantes da categoria: Roseli Frochgarten, do Sistema Integrado de Bibliotecas; e Ivan Hidalgo, da Secretaria de Órgãos Colegiados. Ainda durante a festa virtual, o Sintufrj exibiu o vídeo “Retrato do Trabalho na UFRJ” com imagens, acompanhadas de depoimentos, de muitos servidores em seus variados ambientes de atuação.
Parte importante da experiência democrática brasileira, na UFRJ, está diretamente relacionada às suas entidades representativas. O resgate da história dos movimentos docente, discente, técnico e de terceirizados fez parte da programação do segundo dia de celebrações pelos 100 anos da UFRJ, na terça-feira (8). “Não teríamos essa universidade tão pujante, tão forte, com tanta possibilidade de construir um futuro melhor para o país, se nós não tivéssemos tido a participação coletiva e organizada dessas categorias”, avaliou Eleonora Ziller.
A presidente da Adufrj falou sobre a atuação da associação na construção de um ambiente universitário democrático, a partir de 1979, para a eleição de reitores, para a construção da carreira e a luta conjunta com as demais entidades “por mais verbas” e depois pela Constituinte. Ela enfatizou conquistas-chave como: “o reconhecimento principalmente da Dedicação Exclusiva, do tempo para pesquisa, do fomento, das verbas, orçamentos e a autonomia que nos protege de ações explicitamente anticientíficas, ideológicas, de perseguição e controle do pensamento”.
Sobre os desafios atuais, Eleonora citou o financiamento público para a educação, ciência e tecnologia e as ameaças aos direitos dos servidores. “Tanto a lei de orçamento quanto a reforma administrativa podem nos jogar nos piores anos pré-década de 1980”, advertiu, no fim.
Os estudantes deram boasvindas ao próximo centenário da UFRJ com um olho no futuro e outro no passado. Igor Alves Pinto, da Associação de Pó-graduandos (APG), destacou como o estrangulamento financeiro das universidades públicas pode impactar a produção de ciência e inovação no país. “Das dez patentes depositadas no Brasil [em 2018], seis foram de universidades federais, três de universidades estaduais, todas públicas. A única empresa que aparece na lista é a Petrobras, em quarto lugar”, observou.
Pelo DCE Mário Prata, Rafaela Correa considerou que o “movimento social da UFRJ não se limita à universidade” e “assume responsabilidades junto à sociedade”. “O DCE tem 90 anos dos 100 de UFRJ. Participamos da fundação da UNE, lutamos por autonomia, pela possibilidade de a comunidade acadêmica decidir seus rumos”, exemplificou. DCE e APG defenderam a remoção das homenagens prestadas pela UFRJ a figuras públicas da ditadura militar.
O Sindicato dos Trabalhadores em Educação (Sintufrj) e a Associação dos Trabalhadores Terceirizados (Attufrj) saudaram o centenário da instituição e a cooperação entre todos os segmentos. “É importantíssimo o coletivismo entre as entidades. As outras categorias têm anos nesse centenário da universidade. A terceirização é um acontecimento de vinte anos”, disse Waldinéa Nascimento, representante dos terceirizados na mesa. “É fundamental para que, daqui a cem anos, nós também possamos dizer das nossas duras lutas, mas de conquistas também”.
O Sintufrj exibiu um vídeo com relatos da rotina de apoio ao ensino e à pesquisa realizados por técnico-administrativos em laboratórios, bibliotecas, museus e afins. “Os TAEs constituem a identidade dessa universidade, um de seus pilares. E hoje são homenageados junto com ela, por toda a construção diária realizada nessa instituição magnífica que é a UFRJ”, registrou Noemi Andrade, depois da projeção do curta.
A mesa Uma história de luta e muitas mãos na construção dos 100 anos da UFRJ pode ser conferida no canal do Fórum de Ciência e Cultura no youtube https://bit.ly/2R5uz8l.
A Ciência como norte, a generosidade como meio. Assim foi a vida de Franklin David Rumjanek, professor do Instituto de Bioquímica Médica (IBqM), que faleceu no último dia 6, aos 75 anos, vítima de um câncer. Na véspera do aniversário do centenário da UFRJ, a comunidade acadêmica se despediu do professor emérito, que atuou incansavelmente na pesquisa e na formação de cientistas.
O professor fez parte da criação do curso de Biomedicina, em 1994. “Esse curso foi criado com um perfil muito diferente de todos os outros. A perspectiva era formar pesquisadores na área de ciência biomédica. Coisas muito avançadas para a época, e que claramente tinham um dedo do Franklin”, lembra o professor Pedro Lagerblad, diretor da AdUFRJ e colega de Franklin no Instituto por muitos anos. “Ele também delineou a proposta de transformar o Departamento de Bioquímica em Instituto, e foi o nosso primeiro diretor”, aponta.
Um dirigente que demonstrava um ímpeto de realização muito grande. “Na sua gestão, ele sempre se preocupou em não ficar no zero a zero. Ele queria inovar, criar coisas que não existiam”, diz Pedro. Segundo o diretor da AdUFRJ, a trajetória de Rumjanek abriu portas para muitos outros pesquisadores. “Ele foi pioneiro no estabelecimento de técnicas de biologia molecular”.
Entre suas contribuições para a UFRJ, está a criação do Laboratório Sonda, um dos primeiros no Brasil a realizar diagnósticos de DNA e exames de paternidade. “Aquilo gerou muito recurso, mas todo o dinheiro entrava para o laboratório. Nunca entrou um tostão pro Franklin, por mais que ele tivesse essa possibilidade”, afirma Lagerblad.
O atual diretor do IBqM, Fábio Almeida, ressalta a influência do professor sobre o IBqM. “O Franklin tinha esse olhar prático e generoso da Ciência, e ele colocou esse olhar no nascimento do Instituto. E até hoje a gente vê marcas disso”, conta.
Natural do Rio de Janeiro, o docente se formou em Ciências Biológicas Modalidade Médica pela UERJ, em 1969. E desbravou fronteiras durante sua pós-graduação, cursada na Europa entre 71 e 83. A filha Julia nasceu em Londres nesse período, e destaca o envolvimento constante do pai com leituras e o fascínio por viagens. “Ele sempre viajava muito, e por isso tinha essa fama de ‘professor que escalou o Everest’. Ele não chegou a escalar, mas foi até o acampamento base”, brinca Julia.
Após concluir uma especialização na Dinamarca e o doutorado na Inglaterra, o docente retornou para o Brasil e inicialmente se tornou professor da UFMG, de 1983 a 87, quando foi transferido para UFRJ. Ainda em Belo Horizonte, Franklin começou a contribuir com artigos para a revista Ciência Hoje, da qual foi editor até seu falecimento. Isso despertou nele um amor pela divulgação científica. “Ele amava a Ciência. E isso envolvia tudo. O que era feito, o que era descoberto, a maneira de pensar, e quem fazia”, afirma Vivian Rumjanek, ex-esposa e também colega de Instituto.
Apesar da extensa carreira acadêmica desenvolvida no exterior e no Brasil, Vivian observa que Franklin não se exibia por isso. “A biblioteca do Franklin de livros científicos, de cientistas, e o conhecimento que ele tinha disso tudo era incrível. Mas ele jamais se expunha. Ele era uma pessoa bem discreta, bem britânica no jeito de ser”.
A disposição e o interesse de Franklin por estudar os mais diversos assuntos fica registrada na memória de seus pares como um exemplo. “Ele tinha um conhecimento enciclopédico de ciências em geral. Ele tem um livro, por exemplo, em que fala com muita desenvoltura sobre aspectos de astrobiologia”, destaca Fábio Almeida.
Do mesmo modo, seu senso de humor era uma característica simultaneamente notável e singela. “O Franklin era muito irônico e sarcástico, mas sempre com uma fala mansa, com um tom de voz que não se alterava”, destaca Pedro Lagerblad. Fábio Almeida acredita que o docente fará muita falta. “Ele tinha uma generosidade enorme, e um senso de humor bastante refinado”, pontua.
Já nos anos finais de sua vida, Franklin Rumjanek resolveu mudar completamente. Com uma carreira consolidada internacionalmente na área de parasitologia, o professor decidiu estudar a biologia do câncer. “No final da carreira, onde as pessoas procuram se amarrar, ele se propôs a iniciar um estudo. E isso é uma característica do Franklin, muita vontade de conhecer”, diz Pedro
Grande entusiasta dos processos de aprendizado, Franklin buscava fomentar nos seus alunos a autonomia para resolução de problemas, e assim cativou gerações de discípulos na graduação. Um discurso de formatura para o professor em 2016, quando foi patrono de uma turma da Biomedicina, retrata bem o respeito que os estudantes tinham pelo mestre. “Aprender bioquímica com o senhor foi um privilégio, pois nos instigou com seus conhecimentos, seu jeito descontraído de dar aula, sempre cativando a atenção com pequenas piadas seguidas de grande sabedoria”.
A homenagem expõe também a admiração pela carreira do professor. “Esperamos que, com essas simples palavras, o senhor consiga mensurar a diferença que fez em nossas vidas. Para nós, ainda tão pequenos na ciência, olhar e participar da trajetória de alguém que é nossa referência, é, absolutamente, uma honra”, diz o discurso.
Filho de uma pianista americana, Franklin carregava na alma uma grande paixão pela cultura musical. “Ele amava música clássica, e tinha um amplo conhecimento disso. Sempre que podia, na casa dele havia música clássica tocando ao fundo”, observa Vivian. “Nessas últimas semanas de vida, a Helen, que é a esposa dele, deixava sempre ao fundo a BBC tocando concertos, e eu acho que isso foi muito bom pra ele”, finaliza.
Qual é o papel da universidade na construção do futuro? Para a antropóloga Debora Diniz, professora da UnB, a universidade é o “lugar onde se produz a verdade”. A frase foi dita durante o debate “A universidade do futuro: a ciência e o mundo pós-pandemia”, promovido pela UFRJ nas comemorações do seu centenário. Debora exaltou o papel dos cientistas e sua valentia. Foi coerente quando perguntada sobre como a produção de verdades, que às vezes são tratadas como certezas eternas da ciência, pode ser valorizada sem se afastar do conhecimento produzido pelo povo. “A construção de verdade e o uso da categoria não significa transformá-la em dogma”, explicou a antropóloga. “O que fazemos nas universidades são construções de respostas transitórias a perguntas que batem à nossa porta como verdades da vida”.
O debate reuniu também o professor de Física da USP Paulo Artaxo, especialista em mudanças climáticas e Silvio Almeida, professor de direito da Mackenzie. Representando a UFRJ estavam a reitora e o vice-reitor, Denise Pires de Carvalho e Carlos Frederico Leão Rocha. A mesa foi mediada pela coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, Tatiana Roque.
O vice-reitor trouxe para o debate o avanço da automação e como ele vai influenciar a qualidade dos empregos oferecidos para as pessoas. “A automação tem impactos devastadores na vida econômica, com um potencial de destruição de postos de trabalho poucas vezes visto”, afirmou o professor, que apresentou um dado que estima que entre 30% e 40% dos postos de trabalho que existem hoje devem desaparecer graças ao uso de robôs. A outra consequência da automação é a piora na distribuição de renda. E o cenário é mais grave porque os robôs estão começando a realizar tarefas mais qualificadas.
Na avaliação da reitora, Denise Pires, a universidade está no centro da solução para esse cenário distópico. “As pessoas precisam entender o que nós pesquisadores estamos dizendo”, disse Denise, que é professora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho. “O que resolve esse problema é a informação, a educação e a metodologia científica disseminadas”, disse Denise.
O professor de Física da USP Paulo Artaxo também exaltou a importância da Ciência. “Esse retrocesso civilizatório que passamos hoje vai causar alguns danos, mas vai passar. E a força da pesquisa brasileira vai vencer”. Sem deixar de reconhecer os danos causados pela pandemia, Paulo explicou os graves efeitos provocados pelo aquecimento global que, segundo ele, terão consequências socioeconômicas mais devastadoras e duradouras.
O professor de Direito Silvio Almeida defendeu que a universidade pública tem papel central na procura por soluções para as graves crises política, econômica, jurídica e cultural que o Brasil se encontra. “O centro desse debate é o futuro da universidade, que é o futuro da sociedade”, afirmou Silvio.
Leia abaixo trecho da apresentação da professora Debora Diniz no debate
“Quero começar com meu imenso reconhecimento à magnífica reitora Denise Pires de Carvalho. Tenho um orgulho especial em saudá-la assim, no feminino, professora Denise. O tempo se conta para trás, se imagina para frente, e nessa dos 100 anos nós já somos o futuro de um passado em que mulheres não estariam em sua posição de saber e poder. Eu estendo a minha saudação aos que hoje celebram esse momento juntos, aqui.
Os 100 anos, eu preciso dizer, me angustiaram. Eu tenho metade deles, e sei tão pouco sobre o que antecedeu. Se sou grata ao passado, sou muito responsável, porque tenho o dever de cuidar, como professora, sobre quem nos sucederá nesse lugar de valentia. É disso que eu quero falar.
A universidade é o espaço de produção da palavra valente. É o lugar onde se produz a verdade, e eu peço licença para usar no singular. Nós somos valentes porque produzimos a verdade, e quem diz o que é verdade são as regras da nossa comunidade, isso que chamamos de ciência, de conhecimento acadêmico e literário. Mas quem transforma o mundo não somos nós, mas o povo que vive a vida. O que fazemos na universidade é nos somar às sobrevivências do povo, oferecendo a palavra, reflexão e a dúvida sobre os desafios do nosso tempo.
Nós vivemos melhor do que há 100 anos. Podemos curar doenças que nos matavam, as mulheres podem decidir quantos filhos querem ter, nós conhecemos mais sobre nosso planeta e o universo. Sabemos que a Terra não é plana, que as vacinas previnem doenças, que há fatos históricos – como a escravização ou a ditadura militar de 1964 – que não são opiniões, mas eventos do passado. Algumas desgraças parecem teimar em nos acompanhar nesses 100 anos. Os desconcertos das pandemias é uma delas. As injustiças raciais e de gênero, os efeitos das desigualdades de classe na saúde, no trabalho ou no sonho de quem se quer ser, ou se poderia ser. Não digo que nos estamos piores ou melhores, na vida comum, do que há 100 anos. Penso nos efeitos do sexismo e do racismo. Isso que foi chamado de sociedade, quando me ofereceram o título para hoje. A afirmação verdadeira é outra, e resiste ao relativismo. Somos terrivelmente injustos.
A comparação no tempo não me consola. Preciso agir como alguém que persegue a verdade porque o mundo assim quer. Por que não respeitamos as regras de proteção e saúde pública em uma pandemia? Por que continuamos racistas, sexistas, homofóbicos? Por que perseguimos mulheres e meninas? Por que destruímos terras indígenas? Por que não fomos capazes de acabar com essas injustiças, se aqui é o espaço da produção da palavra verdadeira, da palavra valente, que desafia a ira dos que querem nos governar pelo medo e pela tirania?
A resposta é porque nem todos aceitam a verdade. A palavra valente da verdade encontra seus opositores, em particular aqueles com poder de silenciamento e perseguição. Os covardes temem a verdade, a distorcem. Porque falar a verdade é agitar a dúvida. O covarde que não duvida é o fanático, e o fanático não pode duvidar. Por isso ele desdenha da universidade.
Mas a universidade persiste. Nesses 100 anos não é a primeira vez que precisa mostrar a sua força para produzir a verdade e lutar pelo justo. E não será a última vez, mas será sempre libertadora quando o faz.
Erra quem pensa que um pesquisador e um laboratório definem a sua agenda de pesquisa. O que seria do seu gabinete de trabalho que transforma o mundo. Quem nos agenda é o mundo, é a vida do povo comum, que nos bate à porta. Quanto mais aberta estiver a nossa porta para as necessidades do mundo, mais valente será a universidade para a produção da verdade. E sim, a palavra da universidade para dentro e para fora, para a sua comunidade universitária e para a sociedade, é a palavra valente. Pronunciá-la exige coragem, por isso sempre há risco. Risco de não ser ouvida, de ser silenciada, de ser dito errado.
Mas eu quero dizer que para sermos valentes, primeiro precisamos escutar o mundo. A valentia não está em resistir ao fanático, mas em ser capaz, desde a escuta do mundo, imaginar mundos menos injustos. A coragem de verdade está em sua produção corajosa, está na pronúncia, mesmo sob risco. A controvérsia da palavra verdadeira não pode nos intimidar, muito menos silenciar. Por isso não há heroísmo em quem fala a verdade. Há só uma coragem, partilhada, em todos nós que estamos na universidade para a produção do conhecimento. Nós somos muitos, todos os dias, a fazer isso.
Aprendemos a escutar mais e melhor o mundo nesses 100 anos, e eu quero dar um exemplo. Nesses 100 anos o mundo fez Conceição Evaristo. Essa universidade a titulou como doutora. Essa universidade tem até a ousadia de chamá-la de “ex-aluna ilustre” em suas celebrações de 100 anos. Eu digo a ousadia porque aí está alguém com a coragem da verdade, a quem todas nós, todos nós, somos devedores.
Conceição Evaristo tem a palavra valente da universidade. Ela desafia a ira do racismo. Ela fala de personagens ignoradas pela história, pela literatura, pela etnografia. Ela é incômoda. Faz troça do que se imaginava descrever como literatura canônica. Ela nos oferece imaginação.
Há quem não goste de nós. Os desafetos individuais devem ser ignorados. O nós que importa é sobre a universidade como espaço de criação. Nesses 100 anos, a história de covardia contra as universidades pode ser contada na longa duração, ou pelo instante. Esse é o momento em que a palavra verdadeira da universidade é incômoda para alguns. Há quem queira nos intimidar pelo ódio, impedir que nossas reitoras sejam reitoras, cercear a construção da palavra verdadeira. Mas a universidade não se intimida facilmente. Por isso eu repito, aqui é o espaço da palavra valente da verdade. Ela é incômoda, porque essa é nossa ética da coragem e da responsabilidade. E que assim seja por todo o futuro que espera a UFRJ”.
HORÁCIO MACEDO Foi o primeiro reitor eleito pela comunidade acadêmica, em 1985. Foi um dos redatores do Artigo 207 da Constituição de 1988, que versa sobre a autonomia universitáriaDos cem anos da UFRJ, eu vivi intensamente os últimos 38. Ao pensar nisso, me surpreendo que os anos tenham passado tão rápido, embora seja um clichê tremendo e não devesse abrir assim um artigo num momento tão solene e importante para todos nós. Solene não apenas pela pompa e a formalidade, mas pela seriedade e relevância da data. Mas, é isso mesmo: parece que foi ontem que entrei na Faculdade de Letras, na nossa “saudosa maloca” da Av. Chile, em março de 1982. As péssimas condições em que se encontrava o prédio da Faculdade, sede provisória há tantos anos, contrastava com a riqueza e o dinamismo da vida acadêmica que ali experimentávamos. Era uma produtiva mistura de sonhos para o futuro, um passado cheio de rupturas e revoluções para ser celebrado e o fim do regime autoritário ao alcance de nossas mãos. A quantidade de sonhos que depositávamos nas faixas que pintávamos para a passeata de um milhão pelas “Diretas Já” era incomensurável. Era como se fosse possível combinar as lições de liberdade que recebíamos de tantos mestres nas salas de aula com a possibilidade de construção de um futuro melhor nas ruas da cidade.
Isso foi na Faculdade de Letras. Aprendi a amar a UFRJ na grande greve de 1984, quando a vi inteira e linda na primeira “Universidade na Praça”,
Preparação para a passeata de um milhão pelas Diretas János jardins do nosso Museu Nacional. Da greve à primeira eleição para Reitor foi um pulo. Horácio Macedo marcou profundamente nossa história. Ecoa em mim ainda hoje a sua voz, que dizia ser urgente fazer com que a universidade pública fosse amada e respeitada pela sociedade. E então vieram os grandes debates eleitorais para a sua sucessão e toda a imensa polarização que vivemos naqueles anos. Como esquecer dos auditórios lotados e as intervenções do Horácio e do Luiz Pinguelli, que mobilizavam nossos corações e mentes? Mas, se apurarmos o olhar para a década de 1990, veremos o quanto nos custou as nossas divisões e eternas discussões, principalmente porque ocorriam num cenário dramático de rebaixamento salarial e de violenta restrição orçamentária. As entidades resistiam, greves e manifestações agitavam nosso dia a dia, a instituição tentava de todas as formas, sobreviver.
Em julho de 1998, a tensão na UFRJ chegou ao ápice, permitindo que o governo encontrasse um caminho para a nomeação daquele que não teria mais que 11% dos votos da comunidade universitária na eleição para Reitor. José Henrique Vilhena se tornou Reitor porque entrou na lista tríplice elaborada pelo Consuni, mas principalmente porque o FHC rasgou seus compromissos com a democracia e aceitou nomeá-lo. Há uma dupla conjunção, que não podemos esquecer, pois o governo federal havia mudado a legislação para tentar obrigar a universidade a incluir na lista tríplice o nome dos candidatos minoritários. Mas o imbróglio da posse e os obstáculos da gestão, o retrocesso institucional e o esgarçamento de todo o tecido social da UFRJ nos serviram de lição. A candidatura de Carlos Lessa foi um passo dos mais importantes da nossa história, eleito com 85% dos votos da comunidade universitária. Recomeçamos, a UFRJ se recompôs de suas fraturas. Em seguida, foram dois mandatos do Aloisio Teixeira, cuja tônica era a pacificação, a construção de pontes e a superação de nossa histórica fragmentação.
As duas últimas eleições para reitor demonstraram a maturidade democrática e a lição aprendida pela instituição. Roberto Leher foi eleito num pleito disputadíssimo, por uma pequena margem percentual, tendo sido, inclusive, derrotado entre os docentes. Não houve questionamento sobre a legitimidade do processo, seu nome seguiu para o MEC sem intercorrências e sua sucessão, também. A eleição da Denise Pires, conduzida já num mar tempestuoso e cheio de incertezas, demonstrou o grande concerto democrático que culminou com a nomeação da primeira mulher na reitoria da UFRJ. Para isso, foi preciso uma condução segura da reitoria, mas também o comprometimento dos outros candidatos de não permitirem que seus nomes estivessem disponíveis para qualquer aventura no momento de composição da lista tríplice no Colégio Eleitoral, assim como o compromisso de todos os conselheiros dos colegiados superiores em respeitar o pacto democrático na composição da lista. Ou seja, a vida democrática na UFRJ depende sempre de um consenso livremente aceito, pois paradoxalmente, em todas essas décadas de democratização, nunca conseguimos chegar a um novo pacto institucional garantido pela atualização de nossos estatutos.
A minha geração chegou na universidade no momento em que usufruíamos da luta e do sacrifício de tantos que nos antecederam. Ao entrar na Letras já era rotina a eleição dos chefes de departamento por todos os docentes e não mais pelo corpo deliberativo apenas. Os estudantes ocupavam 1/5 das cadeiras nos órgãos colegiados e nossos professores podiam falar livremente nas salas de aula. Ainda era o governo Figueiredo, mas era o fim da ditadura. Nenhum colega meu desapareceu de repente, nenhum de nós precisou sair escondido no porta-malas dos carros dos professores mais conservadores para despistar a polícia, nenhum de nós foi torturado. Claro que não vivíamos num mar de rosas, mas tivemos a chance de mudar um pouco essa história, e a UFRJ foi uma grande protagonista na elaboração do capítulo sobre a Educação na Constituição de 1988. Saímos em uma caravana de centenas de pessoas – estudantes, professores e funcionários – para ajudar a escrever dois princípios constitucionais essenciais para a nossa sobrevivência até hoje: a universidade é autônoma e o ensino público é gratuito.
O que nos salta aos olhos ao rever ainda que rapidamente a nossa trajetória, é que mesmo diante das mais graves crises institucionais e do mais perverso quadro de restrição orçamentária, nós seguimos produzindo um ensino de alta qualidade, uma pesquisa científica de ampla inserção internacional e reafirmando nosso lugar de vanguarda nacional, figurando sempre como uma das mais importantes instituições do país. Os laboratórios, as bolsas para pesquisa (desde a iniciação científica às de produtividade e de pós-doutorado), a liberdade de cátedra, e mais recentemente, as políticas de inclusão e democratização do acesso à universidade não caíram do céu. São os frutos mais doces de todas essas enormes batalhas. Aos que chegaram há pouco na UFRJ, aos que aqui estão mesmo que um pouco cansados pela idade avançada, a todos nós cabe nesse momento uma decisão difícil, mas necessária. A reforma administrativa que acaba de ser entregue ao Congresso Nacional pelo desgoverno federal, assim como o projeto de lei orçamentária anual (PLOA) para 2021, se passarem, nos jogarão mais uma vez para o cenário desolador de antes de 1980: ausência de carreira, vários regimes de trabalho e estrangulamento orçamentário. Tal como Sísifo, recomecemos. É necessário combinarmos nossa dedicação à vida acadêmica à luta sem descanso em defesa da universidade pública que nos formou e que nos recebeu como docentes. Ou trairemos a memória e a história de todos que vieram antes de nós.