Ana Beatriz Magno
A mais antiga e próspera universidade americana não se rendeu ao obscurantismo persecutório de Donald Trump. Ao contrário da Columbia University, Harvard disse não ao homem que, desde o início do mandato, trata a Ciência e a liberdade de cátedra como inimigos preferenciais do governo. Trump usa as armas de sempre — ódio e cortes. Chegou a anunciar uma redução de quase US$ 9 bilhões em subsídios para Harvard, caso a instituição não revisasse práticas de governança. “A Universidade não abrirá mão de sua independência ou de seus direitos constitucionais”, escreveu o reitor Alan Garber, na última segunda-feira. No mesmo dia, um brilhante pesquisador da UFRJ, João Macena Muniz Vieira, publicou artigo na Revista Nature, convocando seus colegas americanos a não se dobrarem. Em duas páginas de texto vibrante, Vieira relembra a saga que enfrentou para seguir pesquisando nos anos de Bolsonaro. “Liberte-se do ciclo de ódio. Enfurecer-se com os escândalos fabricados por figuras como Trump ou Bolsonaro não mudam nada. Você já conhece as intenções deles. Use sua raiva com sabedoria: participe de um protesto por semana, derrame sua fúria e saia. Você não está sozinho. Professores, colegas e pesquisadores estão no mesmo barco. Participe de protestos para compartilhar solidariedade, mas, acima de tudo, lembre-se: seu trabalho já é resistência. Cada experimento, cada linha de código, cada colaboração é um ato de desafio contra aqueles que querem silenciar a ciência”, escreveu no artigo que o Jornal da AdUFRJ tem a honra de reproduzir abaixo, com tradução do próprio pesquisador.
João Macena Muniz Vieira
Pesquisador pós-doutorando na Universität zu Köln, na Alemanha, com foco na Biologia Evolutiva do Desenvolvimento de artrópodes. É doutor em Ciências Morfológicas pela UFRJ, com formação anterior em Física e Técnicas Nucleares pela UFMG. Sua pesquisa combina regulação gênica, técnicas de sequenciamento e edição genética para investigar a evolução de vias de sinalização em insetos
Pesquisadores, não sejam vítimas da cultura do escândalo
Sobrevivi ao cerco à ciência no Brasil – e vocês também podem1
Entre 2019 e 2023, cursei meu doutorado em Genética do Desenvolvimento evolutivo do besouro Tribolium castaneum na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Meu laboratório, localizado na região costeira de Macaé, tornou-se dano colateral em uma guerra contra a ciência declarada por Jair Bolsonaro, nosso presidente de 2019 a 2022 — uma guerra que pode parecer familiar para muitos pesquisadores dos EUA agora que seu próprio presidente parece determinado a cortar financiamentos para pesquisa científica.
Após a posse de Bolsonaro em 2019, mais de 5,6 mil bolsas de pesquisa desapareceram sob medidas de austeridade que miravam especialmente o ensino superior e a ciência. Os cortes deixaram milhares de pesquisadores em suspenso, enquanto agências federais como a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e o CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) tiveram seus orçamentos drasticamente reduzidos. Professores corriam atrás de financiamentos emergenciais, enquanto cientistas racionavam insumos e encaravam a perspectiva de projetos paralisados.
Naquele ano, uma colega brilhante quase perdeu sua carreira quando o governo cortou sua bolsa dias antes do início do projeto. Sem aviso prévio, ela viu sua pesquisa barrada. Desesperada para não perder todo seu doutorado, ela expôs sua situação e o caso comoveu a opinião pública. O apoio surgiu rápido o bastante para impedir que ela desistisse, mas por pouco.
Outros enfrentaram ameaças similares: uma amiga, incapaz de pagar o aluguel sem a bolsa, abandonou o doutorado por um emprego fora da academia. Outro colega, após meses de incerteza, mudou-se para o exterior para continuar pesquisando. Eu também pensei em desistir. Mas já havia mudado de área uma vez — da Física Nuclear para a Biologia do Desenvolvimento — e sabia que não poderia recomeçar outra vez. Nem mesmo sob Bolsonaro.
Resistência Nacional
Os cortes desencadearam protestos em todo o país, liderados por estudantes, professores e sociedades científicas. Cartazes em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília declaravam: “Conhecimento não é gasto”. Marchando com milhares — mesmo em minha pequena cidade — senti-me parte de uma unidade poderosa.
A pressão surtiu efeito. Em 18 de outubro de 2019, o Ministério da Educação liberou um bilhão de reais para universidades federais — uma concessão rara que entidades como a União Nacional dos Estudantes atribuíram à nossa mobilização. Naquele dia, eu não era só cientista. Era parte de um movimento que havia resistido aos cortes e reafirmado o papel da educação e pesquisa no Brasil. Me senti conectado. Não estava sozinho.
Então, em março de 2020, a pandemia de covid-19 chegou. Em junho, enquanto o governo Bolsonaro continuava a tratar a ciência como atividade elitista, nosso laboratório mudou seu foco: de pesquisa evolutiva para processar testes de covid-19 em parceria com a prefeitura de Macaé. Nossos equipamentos de qPCR, antes usados para mapear expressão gênica em besouros, foram adaptados para diagnósticos em uma campanha que ajudou a manter a taxa de mortalidade de nossa cidade abaixo da média estadual2.
Essa iniciativa crucial significou que eu perdi acesso ao instituto — não apenas porque ele se tornou um laboratório de diagnósticos, mas também devido às rígidas barreiras sanitárias. Meus experimentos foram interrompidos indefinidamente.
Em julho daquele ano, consegui financiamento para um estágio de oito meses no laboratório do biólogo evolutivo Siegfried Roth, na Universidade de Colônia, na Alemanha — uma oportunidade crucial que finalmente me permitiria concluir meu doutorado. A viagem estava originalmente marcada para agosto de 2020, mas foi adiada para fevereiro de 2021, no auge da pandemia.
Naquela altura, eu já havia comprado passagens, alugado um apartamento e passado noites lendo manchetes catastróficas sobre os incessantes ataques de Bolsonaro à ciência — desde chamar o vírus de “gripezinha”, promover a hidroxicloroquina como tratamento (apesar das evidências esmagadoras contra sua eficácia) até os cortes sistemáticos nos orçamentos da ciência e no desmonte das proteções ambientais na Amazônia.
Um dia antes da minha partida, a Alemanha fechou suas fronteiras para viajantes brasileiros, citando o alto número de casos e o surgimento de novas variantes da covid-19. Não pude recuperar os custos. Como a agência de fomento não cobriria este custo extra, o prejuízo financeiro saiu do meu próprio bolso — mais um lembrete brutal da instabilidade da minha situação como pesquisador.
Inovando sob pressão
Preso no limbo, precisei me reinventar outra vez. Troquei o laboratório físico pela Bioinformática, analisando dados em casa enquanto colaborava por Zoom com o grupo de Siegfried na Alemanha, esperando as fronteiras reabrirem. Só consegui viajar no fim de setembro de 2021, e meu estágio oficial acabou se estendendo de outubro daquele ano até abril de 2022. As análises que fiz durante a quarentena se tornaram a base para os experimentos que realizei durante aqueles oito meses em Colônia.
De volta ao Brasil, novos problemas me esperavam. Insumos básicos ficaram presos na alfândega por seis meses, atrasando meus experimentos. Enquanto isso, via trolls na internet — e até alguns parentes — ridicularizarem minha pesquisa como “perda de tempo”, aplaudindo cortes na ciência e defendendo “tratamentos” como a hidroxicloroquina. No meio desse caos, aprendi a navegar na incerteza — uma habilidade que nenhuma agência de fomento ensina ou financia.
Concluir o doutorado foi muito mais do que seguir os protocolos científicos. Foi desafiar meus limites. Aqueles anos se confundem entre obstáculos e crises pessoais, com cada dia testando minha resistência em meio ao turbilhão político. Foi minha esposa quem me levou a buscar ajuda psicológica. Meus orientadores, Rodrigo Nunes da Fonseca e Helena Araújo, mesmo lutando contra a desestruturação das universidades, ainda arranjavam tempo para me orientar sobre editais e oportunidades de treinamento.
O fim do túnel
Em outubro de 2022, Bolsonaro perdeu as eleições. Não aceitando a derrota, alegou fraude e, em 8 de janeiro, seus apoiadores invadiram os prédios do governo em Brasília. A cena era assustadoramente familiar: um ano antes, a mesma tentativa de tomada a força do poder havia acontecido no Capitólio dos EUA, após a derrota de Donald Trump. No Brasil, as instituições seguraram o tranco — o Congresso e o Judiciário impediram o golpe. Em junho de 2023, Bolsonaro foi condenado a oito anos de inelegibilidade. E, em março deste ano, o STF aceitou por unanimidade as denúncias contra ele; até o fim do ano o ex-presidente enfrentará um julgamento criminal.
Enquanto isso, eu seguia meu caminho. Em outubro de 2023, finalmente defendi minha tese. Hoje, sou pesquisador de pós-doutorado no laboratório do Siegfried.
Mas os estragos deixados por anos de ataques à ciência não desaparecem da noite para o dia. O Brasil ainda sente os efeitos: projetos abandonados, mentes brilhantes perdidas para outros países, um atraso que custa caro hoje e no futuro.
Se essa história soa familiar para você, pesquisando enquanto enfrenta o obscurantismo, deixe eu dizer uma coisa: você não está sozinho!
E aqui estão alguns conselhos para você:
Sua pesquisa é sua âncora. Enquanto eu ativamente buscava os fartos motivos para me enfurecer com o último escândalo de Bolsonaro ao invés de ler artigos cruciais para minha formação, meses foram perdidos em raiva desorientada. Retome o foco. Leia aquele estudo que você vem ignorando. Aprimore as técnicas que verdadeiramente te fascinam.
Você não está preso. A academia, as ciências, sobrevivem do movimento. Quando as fronteiras do Brasil me prenderam, os laboratórios da Alemanha permaneceram abertos. Colabore entre os diferentes fusos horários. Compartilhe códigos, protocolos e, principalmente, esperança. Sua expertise transcende geopolítica — use isso a seu favor.
Liberte-se do ciclo de ódio. Enfurecer-se com os escândalos fabricados por figuras como Trump ou Bolsonaro não mudam nada. Você já conhece as intenções deles. Use sua raiva com sabedoria: participe de um protesto por semana, derrame sua fúria e saia.
Você não está sozinho. Professores, colegas e pesquisadores estão no mesmo barco. Participe de protestos para compartilhar solidariedade, mas, acima de tudo, lembre-se: seu trabalho já é resistência. Cada experimento, cada linha de código, cada colaboração é um ato de desafio contra aqueles que querem silenciar a ciência.
Continue.
Conflito de interesse
O autor recebeu financiamento da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e da Faperj (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) durante seu doutorado para pesquisas em Genética do Desenvolvimento evolutivo. Atualmente, o autor não recebe mais financiamento dessas agências.
Referências:
Artigo publicado originalmente na revista Nature em 14 de abril de 2025
1. Vieira, J. Dear US researchers: break the outrage addiction. I survived the besieging of science. So can you. Nature (2025) doi:10.1038/d41586-025-00943-1.
2. Feitosa, N. M. et al.Molecular testing and analysis of disease spreading during the emergence of covid-19 in Macaé, the Brazilian National Capital of Oil. Sci
Rep11, 20121 (2021).