“Não podemos avaliar aquela universidade a partir de hoje”, enfatiza o professor emérito Luiz Antônio Cunha, da Faculdade de Educação. Autor do livro “A universidade temporã: da Colônia à Era Vargas”, o docente argumenta que é preciso pensar a Universidade do Rio de Janeiro com base nas discussões educacionais que ocorriam naquela época na jovem República do Brasil, ávida pela formação de profissionais qualificados.
A frágil modernidade brasileira queria engenheiros, médicos e advogados. Os anos 20 eram tempos conturbados dentro e fora do Brasil. A Europa lambia as enormes feridas da Primeira Guerra Mundial. No Brasil, as cicatrizes da escravidão ainda estavam – estão até hoje – abertas. A capital era o Rio, uma cidade efervescente, animada pelo samba, conturbada pela política oligárquica do café com leite, e massacrada pela gripe espanhola que um ano antes levou a vida de 50 mil moradores, entre eles o presidente Rodrigues Alves, homem que emoldurara a cidade com ares renovadores e reformas sanitárias e urbanísticas.
Com a morte de Alves, o país ficou nas mãos de Delfim Moreira, um vice atormentado por transtornos mentais, e que, em 1919, passou a faixa presidencial para Epitácio Pessoa. Paraibano, formado em Direito em Pernambuco, ele vencera a eleição presidencial do célebre Rui Barbosa, mais conhecido como Águia de Haia.
É nesse contexto que surge a Universidade do Rio de Janeiro, nascida pela junção de três faculdades que já existiam na época – Medicina, Direito e Politécnica. “Em 1920, tivemos a reunião de três unidades de ensino — duas muito antigas, que eram a Escola Politécnica, de 1792, e a Faculdade de Medicina, de 1808, e uma, improvisada, muito recente, de duas instituições privadas de direito que foram estatizadas e fundidas”, diz Luiz Antônio Cunha. “Naquela época, universidade significava instituição de ensino”, completa. A nascente universidade também não era gratuita – a gratuidade só foi instituída em universidades federais nos anos 50 – nas estaduais paulistas foi em 1947. “Quem era pobre tinha um padrinho que pagava, como o escritor Lima Barreto, quando foi aluno da Escola Politécnica”, explica Luiz Antônio.
Carreira universitária não existia. “Isso é muito recente. Havia os catedráticos, encarregados de uma área de saber”. E os livres-docentes, que ministravam disciplinas fora daquela área do conhecimento. “Eles tinham o direito de usar as instalações da instituição para ministrar um curso adicional, fora daquele programa mínimo do curso”, esclarece o professor emérito. As taxas cobradas eram repartidas com a faculdade.
Os catedráticos não viviam dos minguados pagamentos recebidos pelo governo com as aulas. “De jeito nenhum. Era um grande médico, um grande engenheiro, um grande advogado”. A função era disputada em concursos públicos por conferir prestígio aos seus ocupantes. “Ou a pessoa dava aula porque gostava de ensinar”, resume Luiz Antônio Cunha.
FRAGMENTADA
Andrea Queiroz, historiadora e diretora da Divisão de Memória Institucional da UFRJ, destaca que a Universidade do Rio de Janeiro surge por influência do pensamento positivista no início da República. O que também vai induzir à escolha da data de 7 de setembro — ainda não era um feriado nacional — para a assinatura do decreto de fundação pelo então presidente Epitácio Pessoa. A relação com as ciências, que abre o regimento da universidade, explica Andrea, é uma característica positivista.
Mas a classificação como “universidade” ficou apenas no papel. “Na verdade, só é universidade pelo dispositivo legal. Não existia uma relação orgânica entre esses cursos. O que se entende por universidade, na prática, ela ainda não era”, argumenta Andrea.
A fragmentação inicial da instituição, no ponto de vista da historiadora, ainda não foi superada. E Andrea não se referia à atual discussão do calendário acadêmico. “Vemos o reflexo disso nas relações entre as unidades e na dispersão de seu vasto patrimônio e acervo. Apesar de hoje já existirem sistemas integrados tanto de arquivos, de museus e de bibliotecas, ainda assim existe uma autonomia de cada espaço para gerenciar esse patrimônio”, informa Andrea.
Outra marca da embrionária UFRJ era o elitismo, que se apresentou na escolha dos três cursos iniciais para sua constituição, considerados de maior prestígio. “É uma universidade da elite feita para a elite”, afirma. Não por acaso, observa a historiadora, professores desses três cursos vão se revezar na gestão da universidade até 1985, quando ocorre a primeira eleição direta para reitor. “Traduz muito essa perspectiva elitizada que marca a trajetória da universidade”.
Em 1920, o primeiro reitor veio da Faculdade de Medicina: o professor Benjamin Franklin de Ramiz Galvão, o Barão de Ramiz. Escolhido por ser o presidente do Conselho Superior de Ensino da época (cargo que, por sua vez, era nomeado livremente pelo presidente da República) . Pelo regimento, o reitor devia prestar contas de cada ano ao ministro da Justiça e Negócios Interiores — o MEC seria fundado apenas 10 anos depois.
A participação do Barão de Ramiz nas atividades que saudaram a visita do rei da Bélgica ao Brasil, em setembro daquele mesmo ano, suscitou uma fake news: que a universidade teria sido constituída às pressas para conferir um título honorífico ao monarca Alberto I.
Em artigo publicado no site da Sociedade Brasileira de História da Educação, a professora Maria de Lourdes Fávero afirmou não ter encontrado registro desta homenagem da Universidade do Rio de Janeiro. A docente da Faculdade de Educação pesquisou em atas do Conselho Universitário e em periódicos da época. E encontrou um dado que pode ter contribuído para a confusão. Entre vários títulos, o rei belga ganhou o de “presidente honorário do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro”, do qual Ramiz era diretor.
Ao receber a honraria do IHGB, o rei belga proferiu um belo vaticínio, de acordo com o discurso reproduzido pela professora: “O ano de 1920 será uma data para sempre memorável nos fatos intelectuais de vosso país. Vós tendes já na maioria das capitais dos Estados, altas escolas e faculdades notáveis, cuja reputação transpõe vossas fronteiras. Possuireis, contudo, uma universidade integral que será digna do Brasil e que se tornará, não duvido, um cenáculo brilhante, cuja influência será um fator considerável à vida científica de Vossa Pátria”.
O rei não poderia estar mais certo.