Foto: Isabela AmaralAlgumas coincidências históricas podem explicar as motivações que levaram Daniel Capecchi, professor de Direito Constitucional e Administrativo da Faculdade Nacional de Direito (FND/UFRJ), a investigar as relações entre a Constituição de 1988 e a ascensão do bolsonarismo. No dia em que ele passou em seu primeiro concurso público como professor universitário, para a Federal de Juiz de Fora, a presidenta Dilma Rousseff foi afastada da Presidência da República. E em 2018, quando ele ingressou na UFRJ, o Brasil elegeu Jair Bolsonaro como presidente.
“Minha história como professor de Direito Constitucional, um ramo do Direito muito ligado à Política, está conectada com essas transições. Eu queria analisar esse momento que vivi como sujeito a partir da perspectiva acadêmica”, diz Daniel, que relatou os resultados desse longo trabalho — foram quase seis anos de pesquisa — em sua tese de doutorado, aprovada com louvor, e que agora chega ao público nas 422 páginas do livro “Promessa Constitucional e Crise Democrática: o populismo autoritário e a Constituição de 1988” (Editora Lúmen Juris), a ser lançado no próximo dia 21 de agosto.
A obra parte de um questionamento básico: como uma Constituição celebrada por seu caráter democrático e por ampliar direitos — foi batizada como “Constituição Cidadã” — permitiu a ascensão do autoritarismo? E mergulha nas contradições que desembocaram no bolsonarismo: de um lado, as promessas de igualdade e liberdade, previstas na Carta de 1988; de outro, o caráter oligárquico e refratário a mudanças de nossas instituições. “Meu trabalho foi tentar entender como a Constituição de 1988, um dos momentos mais bonitos da história brasileira, com intensa participação popular, acabou não impedindo, e até fomentando, o surgimento do bolsonarismo”, conta o professor.
PROMESSAS E FRUSTRAÇÕES
Chefe do Departamento de Direito do Estado e coordenador do Laboratório de Estudos em Direito, Tecnologia e Inovação (LEDTI) da FND, Daniel Capecchi iniciou suas investigações a partir de uma insatisfação com as narrativas sobre o surgimento do bolsonarismo. “Essas narrativas, seja na Ciência Política, seja no Direito Constitucional, não conseguiam explicar o bolsonarismo como um fenômeno que surgiu dentro das contradições da democracia brasileira, sobretudo a partir da Constituição de 1988. O meu grande desafio foi tentar entender o bolsonarismo por meio de uma lente constitucional”, lembra ele.
Em sua tese de doutorado, que deu origem ao livro, Daniel já descrevia que a principal agenda do bolsonarismo era reduzir o que o movimento convencionou chamar de “povo brasileiro”. “Uma identidade restrita, excluindo grupos como negros, indígenas, mulheres e minorias sexuais, além de promover uma destruição da democracia como um regime de alternância de poder”, identifica o autor.
Segundo Daniel, o bolsonarismo se alimentou das frustrações com a Constituição de 1988. “Embora a Carta prometa um futuro de igualdade e liberdade, as instituições formadas por essa mesma Constituição foram progressivamente se distanciando dessa promessa, se tornando mais oligárquicas e ensimesmadas. E o grau de desigualdade social e concentração de renda do Brasil, que permaneceu quase inalterado, reforçou um sentimento de frustração. É nesse contexto que o bolsonarismo encontra um campo fértil para florescer”, sustenta o professor.
A chegada de Bolsonaro ao poder, em 2018, é o ápice dessa conjunção de contradições: “De um lado, o bolsonarismo é liderado por grupos que ficaram insatisfeitos com aquilo que a Constituição entregou, com as promessas que foram cumpridas, como maior igualdade de gênero e racial, algum grau de proteção econômica aos mais pobres, mais serviços públicos, como o SUS. E esses grupos mobilizaram uma grande parcela da população que estava frustrada com aquilo que a Constituição não entregou, com as promessas não cumpridas. A superposição desses dois grupos foi o que permitiu a ascensão de Bolsonaro ao poder”.
RISCOS À DEMOCRACIA
O ministro Luís Roberto Barroso, presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, acompanha o trabalho de Daniel desde a defesa da tese de doutorado do autor — era um dos integrantes da banca. “Daniel Capecchi é uma mente brilhante de sua geração, e este livro demonstra seu compromisso com o aprofundamento do debate constitucional e a defesa dos valores democráticos”, elogia o ministro. Barroso destaca que o livro “é leitura obrigatória para aqueles que se preocupam com o destino de nossa democracia e com a perenidade dos direitos fundamentais previstos em nossa Constituição”.
Orientador da tese de doutorado que deu origem ao livro, o professor Rodrigo Brandão, da Uerj, também não poupa elogios ao autor. “Não há maior felicidade a um professor do que testemunhar o brilhantismo dos seus alunos, e ter acompanhado a trajetória de Daniel Capecchi desde a graduação foi uma honra e um privilégio, daqueles que dão completo sentido à escolha da atividade docente como profissão de fé”, diz Rodrigo. Para ele, o livro impõe uma reflexão: “A Carta de 1988 não conseguiu alterar estruturas de poder oligárquicas e excludentes. Concorde-se ou não com as ideias centrais do livro, não há como deixar de se reconhecer a sua enorme contribuição ao debate travado sobre a crise do constitucionalismo democrático no Brasil”.
Ao falar no livro sobre acontecimentos como os protestos de junho de 2013, o impeachment de Dilma Rousseff, o governo Bolsonaro e a tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023, Daniel revisita a sua própria história. “Sou da geração que viveu o junho de 2013, eu estava na faculdade, fui às ruas. Na universidade, nós vimos muito fortemente a pressão do governo Bolsonaro, o risco de perseguição, o temor de ter nossa autonomia desrespeitada, nosso orçamento dilapidado, o descaso com a Educação, o antagonismo com a Ciência. Acho que a vocação histórica das pessoas da minha geração é refletir e escrever sobre isso”.
O professor conclui com um alerta. “O descompasso entre as promessas da Constituição de 1988 e a realidade de uma sociedade desigual e oligárquica gerou descrença, cinismo e frustração. Nesse clima, o bolsonarismo chegou ao poder. Será que sua derrota eleitoral terá sido suficiente para superarmos as ameaças à democracia ou o clima global de autocratização é uma lembrança dos perigos no horizonte?”.
LANÇAMENTO
Travessa do Centro
21 de agosto, 17h.
Avenida Graça Aranha, 296