Pela primeira vez no Brasil, o golpismo militar está no banco dos réus. O professor Francisco Carlos Teixeira avalia, em artigo exclusivo para o Jornal da AdUFRJ, as raízes do fenômeno que, desde a Proclamação da República, produziu tantas mortes e feridas ainda abertas. O docente, Titular do Instituto de História, considera que o julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e seus aliados no Supremo Tribunal Federal poderá finalmente encerrar um ciclo de impunidade.
“Dos 37 indiciados no processo, 25 são militares da ativa e da reserva. Entre eles, seis generais — um da ativa. Este é o dado fundamental. A forma como o Supremo Tribunal Federal está julgando, através do fatiamento em núcleos, às vezes encobre essa presença maciça (67%) dos militares na participação da tentativa de golpe”, afirmou Teixeira à Comunicação da AdUFRJ. “Lembrando que esses militares tinham cargos fundamentais na República, inclusive com juramento de defesa da Constituição”.
Confira a seguir, a íntegra do artigo.
Um julgamento histórico
Francisco Carlos Teixeira da Silva
Professor Titular do Instituto de História
Poucas vezes a História do Tempo Presente, e seus historiadores, foram tão desafiados no seu ofício. Trata-se da análise e do registro “à quente” de um processo que se autoalimenta – tanto o golpismo, dito “continuado”, quanto as medidas de defesa da ordem constitucional – e se desdobraram no nosso quotidiano. Ao golpismo, impenitente, se soma outro fenômeno histórico de raízes históricas tão profundas quanto o golpismo militar na América Latina: a intervenção estrangeira, a invasão da soberania nacional e as ameaças de violências físicas e institucionais de uma grande potência sobre o continente. Os dois fenômenos, golpismo e Imperialismo, se iluminam mutuamente, num quadro internacional em que movimentos de Extrema-Direita se apossaram do poder, num avanço inédito de formas fascistizantes de governo depois de 1945.
Nunca na História da República brasileira assistimos ao golpismo militar e ao chamado “Imperialismo”, mais uma vez aliados, serem levados de forma autônoma e livre ao banco dos réus. Sim, em verdade, o julgamento é duplo: a condenação ao golpismo será, também, a condenação aos seus aliados nacionais e internacionais.
É nesse sentido que se exige um esforço teórico e metodológico da História do Tempo Presente: trata-se de analisar o que no presente possui suas raízes num passado imediato, e mediado, ainda não encerrado como processo histórico, vindo ao menos da Proclamação da República, em 1889, e dos diversos golpes, pronunciamentos ilegais, ataques e tomadas do poder legitimo pelos militares.
Mesmo a nova “transição” democrática, pós 1964, foi capenga: entre 1980-1985 bombas – logo após o Decreto da Anistia, de 1979 -, sequestros, invasões marcaram a violência – hoje apagada na História – da transição democrática brasileira. E, como em 1945-1946, a transição de 1979-1988 – a mais longa transição da História de qualquer República moderna, não se deram punições, exposições ou afastamento daqueles diretamente envolvidos com as torturas, sequestro e mortes e, claro, com as ofensas inconstitucionais contra a República. A impunidade dos anos de 1920 e 1930 e a ausência de uma transição democrática em 1945 informam e alimentam o golpe de 1964, e a impunidade de 1980- 1985 alimentaram, por sua vez, as expectativas que corroem a Nova República, anunciada por Tancredo Neves em 1985. Nenhum dos poderosos de 1964-1985, nenhum dos autores da violência “bombista” de 1980-1985, incluindo o episodio do RioCentro em 1981 e mais de 40 outros atentados à bomba, com vítimas, contra símbolos da luta pela democratização do Brasil, foram punidos.
Ou seja, a impunidade de 1945 alimenta o golpe de 1964 e a inexistência de Justiça reparadora em 1980-1988, decorrente da autoanistia do regime em 1979, alimentou, e permitiu, a corrosão da República, com o apagamento dos crimes contra a Humanidade e os Direitos Humanos e a revisão da natureza brutal da ditadura de 1964, tornando-se a própria “névoa da História” – do tipo, “- O erro foi matar pouco!” ou “Não houve ditadura!” ou, ainda, o odioso “-Mataram-se mutuamente!” e mesmo o elogio público, no Parlamento, de torturadores, versões de uma História prostituída produzida pelos setores mais reacionários e violentos dos porões e repetido pelo próprio, então, Presidente da República entre 2019 e 2022.
Esses são os enlaces que constroem a estrutura da História do Tempo Presente: 1937, 1945, 1954, 1961, 1964, 1980-1985, 2016 e finalmente 2019-2023.
Aí estão os enlaces que fazem da longa História da República no Brasil numa História do Tempo Presente, uma História de feridas abertas.
Em suma, a impunidade é o berço do vício e do eterno retorno da República à tutela militar. Hoje temos a oportunidade inédita de romper com a repetição viciosa da História: dos 37 indivíduos, todos em altos cargos da República, que começam a prestar contas por sua atuação golpista, 25 são militares da Ativa e da Reserva. Ou seja, são seis (06) generais, a maioria em cargos ministeriais e de alta responsabilidade no próprio Palácio do Planalto; um (01) almirante, então Comandante da Marinha, e, portanto, do poderoso Corpo de Fuzileiros Navais; oito (08) coronéis, com cargos e comandos; seis (06) tenentes-coronéis, incluindo o Ten.-Cel. Mauro Cid; um (01) capitão, o próprio Presidente da República e um (01) Subtenente, além de policiais federais, funcionários da Abin e da PRF. Ou seja, mais de 67% de todo o pessoal conspirador era de origens, função e de cargos militares.
O que desejavam? No imediato, conforme os planos de ação confiscados – “Plano Copa”, “Plano Punhal Verde-Amarelo” – tratava-se de um brutal magnificídio – do Presidente da República eleito, do seu Vice e do, então, Presidente do STF, além da prisão de outros dois ministros do STF. Para a maioria dos democratas já se organizavam os campos de internação/concentração, visando calar toda oposição.
A “doutrina” da Tutela Militar, ameaçava a História do Tempo Presente, pela sistemática impunidade, a reforçar os enlaces e conexões com os anos de 1930 e 1940 e repetir os processos históricos fascistizantes em avanço em todo o mundo.