João Torres
Professor do Instituto de Física e
pró-reitor de Pós-graduação
e Pesquisa da UFRJ
Nos últimos meses, a cobertura internacional sobre Gaza tem se concentrado, com razão, na destruição de hospitais e escolas. No entanto, um aspecto igualmente vital da infraestrutura civil tem recebido menos atenção: as universidades. Desde o início das operações militares de Israel em 2023, ao menos doze instituições de ensino superior foram completamente destruídas. Estima-se que cerca de 94 professores universitários tenham sido mortos, além de centenas de estudantes e dezenas de administradores acadêmicos.
Um dos casos mais simbólicos dessa destruição é o da Universidade Al-Aqsa — a mais antiga instituição pública de ensino superior da Faixa de Gaza — que, até 2024, atendia cerca de 26 mil estudantes. Suas instalações foram completamente arrasadas por bombardeios israelenses e suas bibliotecas foram queimadas de propósito, com imagens registradas pelos próprios perpetradores.
No meio das ruínas das cidades bombardeadas, entre a dor de familiares assassinados e a perda de lares, jovens palestinos encontram um raro refúgio: a Ciência. Em meio ao genocídio em curso, eles continuam estudando Física de buracos negros, teoria dos números primos, Óptica Quântica e outros temas complexos da Ciência moderna. E não estão sozinhos.
Uma constelação de cientistas mundialmente reconhecidos tem se mobilizado para oferecer a esses estudantes um elo com o conhecimento e com a dignidade humana. Dentre os envolvidos estão nomes de peso como os Prêmios Nobel Anne L’Huillier, Michel Mayor,e Alain Aspect, além dos medalhistas Fields (o “Nobel da Matemática”) Terence Tao, Cédric Villani e Edward Witten. A esses se somam pesquisadores como Neil Turok, ex-diretor do Instituto Perimeter de Física Teórica, e Carlo Rovelli, autor de best-sellers em Física. Como isso é possível?
Duas grandes iniciativas têm garantido essa ponte entre Gaza e o mundo acadêmico internacional. A primeira é a Solidariedade Acadêmica com a Palestina (Academic Solidarity with Palestine), uma rede formada por cerca de quatro mil voluntários, dedicada a manter o acesso à educação superior para jovens palestinos. Em parceria com a Universidade de Lille, na França, e a Universidade An-Najah, na Cisjordânia, a iniciativa organiza cursos online voltados às necessidades dos estudantes de Gaza.
As dificuldades, porém, são imensas. A organização distribui chips de celular para que os alunos consigam se conectar à internet. Muitos deles caminham longas distâncias até encontrar sinal suficiente para assistir às aulas. Uma realidade que lembra, numa versão muito pior, os desafios enfrentados por estudantes brasileiros durante os períodos mais críticos da pandemia da covid-19.
A segunda iniciativa é a organização Cientistas pela Palestina (Scientists for Palestine – S4P). Criada em 2015 por físicos dos EUA e do Reino Unido, a S4P busca apoiar a Ciência na Palestina e mitigar os efeitos devastadores da ocupação militar sobre o ensino e a pesquisa. Através de ações diretas em território palestino e da articulação de uma rede internacional de cientistas, a organização realiza webinários, escolas de verão, captação de recursos e programas de intercâmbio para estudantes e pesquisadores palestinos.
Mesmo diante da guerra, das limitações técnicas e da dor, as aulas continuam acontecendo. E acontecem em nome dos direitos humanos universais, conforme expressos na Declaração Universal de 1948 — o mesmo ano da criação do Estado de Israel. Esses direitos não são ideias abstratas: são fundamentos da dignidade humana, como o direito à vida, à liberdade, à saúde, ao trabalho — e à educação.
O mais impressionante é que, antes da guerra contra Gaza, a Palestina tinha uma das maiores taxas de alfabetização da região — um testemunho do valor que seu povo atribui à educação, mesmo após décadas de ocupação.
A solidariedade internacional de grandes cientistas com Gaza não é de hoje. Um dos episódios mais emblemáticos ocorreu em 2013, quando o renomado físico Stephen Hawking (foto) decidiu boicotar a Conferência Presidencial de Israel, organizada pelo então presidente Shimon Peres. Hawking havia inicialmente aceitado o convite, mas voltou atrás após apelos de acadêmicos palestinos e de colegas ao redor do mundo, em apoio ao movimento BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções). Sua decisão gerou ampla repercussão internacional e foi interpretada como um gesto político forte, vindo de um cientista de prestígio global, em defesa dos direitos dos palestinos. Vale lembrar que Hawking já havia visitado a Palestina em 2006 , quando participou de uma videoconferência com estudantes em Gaza, expressando apoio à educação e ao direito dos palestinos ao acesso ao conhecimento — mesmo sob condições de bloqueio e ocupação. Seu gesto permanece como referência simbólica da aliança entre ciência e justiça.
Participar de um colóquio com cientistas de alto nível ou fazer um curso de Física ou de línguas, mesmo que online, dá aos estudantes palestinos uma certeza fundamental: eles não foram esquecidos. Ainda são vistos como seres humanos, apesar da intensa campanha de desumanização que enfrentam. A ciência, a educação e a busca por uma compreensão mais ampla do universo são valores universais — e os jovens palestinos ainda vivos merecem usufruí-los como qualquer um dos nossos estudantes aqui na UFRJ.