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WhatsApp Image 2020 09 14 at 08.25.101Qual é o papel da universidade na construção do futuro? Para a antropóloga Debora Diniz, professora da UnB, a universidade é o “lugar onde se produz a verdade”. A frase foi dita durante o debate “A universidade do futuro: a ciência e o mundo pós-pandemia”, promovido pela UFRJ nas comemorações do seu centenário. Debora exaltou o papel dos cientistas e sua valentia. Foi coerente quando perguntada sobre como a produção de verdades, que às vezes são tratadas como certezas eternas da ciência, pode ser valorizada sem se afastar do conhecimento produzido pelo povo. “A construção de verdade e o uso da categoria não significa transformá-la em dogma”, explicou a antropóloga. “O que fazemos nas universidades são construções de respostas transitórias a perguntas que batem à nossa porta como verdades da vida”.
O debate reuniu também o professor de Física da USP Paulo Artaxo, especialista em mudanças climáticas e Silvio Almeida, professor de direito da Mackenzie. Representando a UFRJ estavam a reitora e o vice-reitor, Denise Pires de Carvalho e Carlos Frederico Leão Rocha. A mesa foi mediada pela coordenadora do Fórum de Ciência e Cultura da UFRJ, Tatiana Roque.
O vice-reitor trouxe para o debate o avanço da automação e como ele vai influenciar a qualidade dos empregos oferecidos para as pessoas. “A automação tem impactos devastadores na vida econômica, com um potencial de destruição de postos de trabalho poucas vezes visto”, afirmou o professor, que apresentou um dado que estima que entre 30% e 40% dos postos de trabalho que existem hoje devem desaparecer graças ao uso de robôs. A outra consequência da automação é a piora na distribuição de renda. E o cenário é mais grave porque os robôs estão começando a realizar tarefas mais qualificadas.
Na avaliação da reitora, Denise Pires, a universidade está no centro da solução para esse cenário distópico. “As pessoas precisam entender o que nós pesquisadores estamos dizendo”, disse Denise, que é professora do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho. “O que resolve esse problema é a informação, a educação e a metodologia científica disseminadas”, disse Denise.
O professor de Física da USP Paulo Artaxo também exaltou a importância da Ciência. “Esse retrocesso civilizatório que passamos hoje vai causar alguns danos, mas vai passar. E a força da pesquisa brasileira vai vencer”. Sem deixar de reconhecer os danos causados pela pandemia, Paulo explicou os graves efeitos provocados pelo aquecimento global que, segundo ele, terão consequências socioeconômicas mais devastadoras e duradouras.
O professor de Direito Silvio Almeida defendeu que a universidade pública tem papel central na procura por soluções para as graves crises política, econômica, jurídica e cultural que o Brasil se encontra. “O centro desse debate é o futuro da universidade, que é o futuro da sociedade”, afirmou Silvio.

Leia abaixo trecho da apresentação da professora Debora Diniz no debate

“Quero começar com meu imenso reconhecimento à magnífica reitora Denise Pires de Carvalho. Tenho um orgulho especial em saudá-la assim, no feminino, professora Denise. O tempo se conta para trás, se imagina para frente, e nessa dos 100 anos nós já somos o futuro de um passado em que mulheres não estariam em sua posição de saber e poder. Eu estendo a minha saudação aos que hoje celebram esse momento juntos, aqui.
Os 100 anos, eu preciso dizer, me angustiaram. Eu tenho metade deles, e sei tão pouco sobre o que antecedeu. Se sou grata ao passado, sou muito responsável, porque tenho o dever de cuidar, como professora, sobre quem nos sucederá nesse lugar de valentia. É disso que eu quero falar.
A universidade é o espaço de produção da palavra valente. É o lugar onde se produz a verdade, e eu peço licença para usar no singular. Nós somos valentes porque produzimos a verdade, e quem diz o que é verdade são as regras da nossa comunidade, isso que chamamos de ciência, de conhecimento acadêmico e literário. Mas quem transforma o mundo não somos nós, mas o povo que vive a vida. O que fazemos na universidade é nos somar às sobrevivências do povo, oferecendo a palavra, reflexão e a dúvida sobre os desafios do nosso tempo.
Nós vivemos melhor do que há 100 anos. Podemos curar doenças que nos matavam, as mulheres podem decidir quantos filhos querem ter, nós conhecemos mais sobre nosso planeta e o universo. Sabemos que a Terra não é plana, que as vacinas previnem doenças, que há fatos históricos – como a escravização ou a ditadura militar de 1964 – que não são opiniões, mas eventos do passado. Algumas desgraças parecem teimar em nos acompanhar nesses 100 anos. Os desconcertos das pandemias é uma delas. As injustiças raciais e de gênero, os efeitos das desigualdades de classe na saúde, no trabalho ou no sonho de quem se quer ser, ou se poderia ser. Não digo que nos estamos piores ou melhores, na vida comum, do que há 100 anos. Penso nos efeitos do sexismo e do racismo. Isso que foi chamado de sociedade, quando me ofereceram o título para hoje. A afirmação verdadeira é outra, e resiste ao relativismo. Somos terrivelmente injustos.
A comparação no tempo não me consola. Preciso agir como alguém que persegue a verdade porque o mundo assim quer. Por que não respeitamos as regras de proteção e saúde pública em uma pandemia? Por que continuamos racistas, sexistas, homofóbicos? Por que perseguimos mulheres e meninas? Por que destruímos terras indígenas? Por que não fomos capazes de acabar com essas injustiças, se aqui é o espaço da produção da palavra verdadeira, da palavra valente, que desafia a ira dos que querem nos governar pelo medo e pela tirania?
A resposta é porque nem todos aceitam a verdade. A palavra valente da verdade encontra seus opositores, em particular aqueles com poder de silenciamento e perseguição. Os covardes temem a verdade, a distorcem. Porque falar a verdade é agitar a dúvida. O covarde que não duvida é o fanático, e o fanático não pode duvidar. Por isso ele desdenha da universidade.
Mas a universidade persiste. Nesses 100 anos não é a primeira vez que precisa mostrar a sua força para produzir a verdade e lutar pelo justo. E não será a última vez, mas será sempre libertadora quando o faz.
Erra quem pensa que um pesquisador e um laboratório definem a sua agenda de pesquisa. O que seria do seu gabinete de trabalho que transforma o mundo. Quem nos agenda é o mundo, é a vida do povo comum, que nos bate à porta. Quanto mais aberta estiver a nossa porta para as necessidades do mundo, mais valente será a universidade para a produção da verdade. E sim, a palavra da universidade para dentro e para fora, para a sua comunidade universitária e para a sociedade, é a palavra valente. Pronunciá-la exige coragem, por isso sempre há risco. Risco de não ser ouvida, de ser silenciada, de ser dito errado.
Mas eu quero dizer que para sermos valentes, primeiro precisamos escutar o mundo. A valentia não está em resistir ao fanático, mas em ser capaz, desde a escuta do mundo, imaginar mundos menos injustos. A coragem de verdade está em sua produção corajosa, está na pronúncia, mesmo sob risco. A controvérsia da palavra verdadeira não pode nos intimidar, muito menos silenciar. Por isso não há heroísmo em quem fala a verdade. Há só uma coragem, partilhada, em todos nós que estamos na universidade para a produção do conhecimento. Nós somos muitos, todos os dias, a fazer isso.
Aprendemos a escutar mais e melhor o mundo nesses 100 anos, e eu quero dar um exemplo. Nesses 100 anos o mundo fez Conceição Evaristo. Essa universidade a titulou como doutora. Essa universidade tem até a ousadia de chamá-la de “ex-aluna ilustre” em suas celebrações de 100 anos. Eu digo a ousadia porque aí está alguém com a coragem da verdade, a quem todas nós, todos nós, somos devedores.
Conceição Evaristo tem a palavra valente da universidade. Ela desafia a ira do racismo. Ela fala de personagens ignoradas pela história, pela literatura, pela etnografia. Ela é incômoda. Faz troça do que se imaginava descrever como literatura canônica. Ela nos oferece imaginação.
Há quem não goste de nós. Os desafetos individuais devem ser ignorados. O nós que importa é sobre a universidade como espaço de criação. Nesses 100 anos, a história de covardia contra as universidades pode ser contada na longa duração, ou pelo instante. Esse é o momento em que a palavra verdadeira da universidade é incômoda para alguns. Há quem queira nos intimidar pelo ódio, impedir que nossas reitoras sejam reitoras, cercear a construção da palavra verdadeira. Mas a universidade não se intimida facilmente. Por isso eu repito, aqui é o espaço da palavra valente da verdade. Ela é incômoda, porque essa é nossa ética da coragem e da responsabilidade. E que assim seja por todo o futuro que espera a UFRJ”.

WhatsApp Image 2020 09 14 at 08.25.10A Ciência como norte, a generosidade como meio. Assim foi a vida de Franklin David Rumjanek, professor do Instituto de Bioquímica Médica (IBqM), que faleceu no último dia 6, aos 75 anos, vítima de um câncer. Na véspera do aniversário do centenário da UFRJ, a comunidade acadêmica se despediu do professor emérito, que atuou incansavelmente na pesquisa e na formação de cientistas.
O professor fez parte da criação do curso de Biomedicina, em 1994. “Esse curso foi criado com um perfil muito diferente de todos os outros. A perspectiva era formar pesquisadores na área de ciência biomédica. Coisas muito avançadas para a época, e que claramente tinham um dedo do Franklin”, lembra o professor Pedro Lagerblad, diretor da AdUFRJ e colega de Franklin no Instituto por muitos anos. “Ele também delineou a proposta de transformar o Departamento de Bioquímica em Instituto, e foi o nosso primeiro diretor”, aponta.
Um dirigente que demonstrava um ímpeto de realização muito grande. “Na sua gestão, ele sempre se preocupou em não ficar no zero a zero. Ele queria inovar, criar coisas que não existiam”, diz Pedro. Segundo o diretor da AdUFRJ, a trajetória de Rumjanek abriu portas para muitos outros pesquisadores. “Ele foi pioneiro no estabelecimento de técnicas de biologia molecular”.
Entre suas contribuições para a UFRJ, está a criação do Laboratório Sonda, um dos primeiros no Brasil a realizar diagnósticos de DNA e exames de paternidade. “Aquilo gerou muito recurso, mas todo o dinheiro entrava para o laboratório. Nunca entrou um tostão pro Franklin, por mais que ele tivesse essa possibilidade”, afirma Lagerblad.
O atual diretor do IBqM, Fábio Almeida, ressalta a influência do professor sobre o IBqM. “O Franklin tinha esse olhar prático e generoso da Ciência, e ele colocou esse olhar no nascimento do Instituto. E até hoje a gente vê marcas disso”, conta.
Natural do Rio de Janeiro, o docente se formou em Ciências Biológicas Modalidade Médica pela UERJ, em 1969. E desbravou fronteiras durante sua pós-graduação, cursada na Europa entre 71 e 83. A filha Julia nasceu em Londres nesse período, e destaca o envolvimento constante do pai com leituras e o fascínio por viagens. “Ele sempre viajava muito, e por isso tinha essa fama de ‘professor que escalou o Everest’. Ele não chegou a escalar, mas foi até o acampamento base”, brinca Julia.
Após concluir uma especialização na Dinamarca e o doutorado na Inglaterra, o docente retornou para o Brasil e inicialmente se tornou professor da UFMG, de 1983 a 87, quando foi transferido para UFRJ. Ainda em Belo Horizonte, Franklin começou a contribuir com artigos para a revista Ciência Hoje, da qual foi editor até seu falecimento. Isso despertou nele um amor pela divulgação científica. “Ele amava a Ciência. E isso envolvia tudo. O que era feito, o que era descoberto, a maneira de pensar, e quem fazia”, afirma Vivian Rumjanek, ex-esposa e também colega de Instituto.
Apesar da extensa carreira acadêmica desenvolvida no exterior e no Brasil, Vivian observa que Franklin não se exibia por isso. “A biblioteca do Franklin de livros científicos, de cientistas, e o conhecimento que ele tinha disso tudo era incrível. Mas ele jamais se expunha. Ele era uma pessoa bem discreta, bem britânica no jeito de ser”.
A disposição e o interesse de Franklin por estudar os mais diversos assuntos fica registrada na memória de seus pares como um exemplo. “Ele tinha um conhecimento enciclopédico de ciências em geral. Ele tem um livro, por exemplo, em que fala com muita desenvoltura sobre aspectos de astrobiologia”, destaca Fábio Almeida.
Do mesmo modo, seu senso de humor era uma característica simultaneamente notável e singela. “O Franklin era muito irônico e sarcástico, mas sempre com uma fala mansa, com um tom de voz que não se alterava”, destaca Pedro Lagerblad. Fábio Almeida acredita que o docente fará muita falta. “Ele tinha uma generosidade enorme, e um senso de humor bastante refinado”, pontua.
Já nos anos finais de sua vida, Franklin Rumjanek resolveu mudar completamente. Com uma carreira consolidada internacionalmente na área de parasitologia, o professor decidiu estudar a biologia do câncer. “No final da carreira, onde as pessoas procuram se amarrar, ele se propôs a iniciar um estudo. E isso é uma característica do Franklin, muita vontade de conhecer”, diz Pedro
Grande entusiasta dos processos de aprendizado, Franklin buscava fomentar nos seus alunos a autonomia para resolução de problemas, e assim cativou gerações de discípulos na graduação. Um discurso de formatura para o professor em 2016, quando foi patrono de uma turma da Biomedicina, retrata bem o respeito que os estudantes tinham pelo mestre. “Aprender bioquímica com o senhor foi um privilégio, pois nos instigou com seus conhecimentos, seu jeito descontraído de dar aula, sempre cativando a atenção com pequenas piadas seguidas de grande sabedoria”.
A homenagem expõe também a admiração pela carreira do professor. “Esperamos que, com essas simples palavras, o senhor consiga mensurar a diferença que fez em nossas vidas. Para nós, ainda tão pequenos na ciência, olhar e participar da trajetória de alguém que é nossa referência, é, absolutamente, uma honra”, diz o discurso.
Filho de uma pianista americana, Franklin carregava na alma uma grande paixão pela cultura musical. “Ele amava música clássica, e tinha um amplo conhecimento disso. Sempre que podia, na casa dele havia música clássica tocando ao fundo”, observa Vivian. “Nessas últimas semanas de vida, a Helen, que é a esposa dele, deixava sempre ao fundo a BBC tocando concertos, e eu acho que isso foi muito bom pra ele”, finaliza.

Lucas Abreu, Kim Queiroz e Liz Mota Almeida

WhatsApp Image 2020 09 07 at 13.11.53AULA NO PAVILHÃO de Doenças Tropicais da Faculdade de Medicina da Universidade do Rio de Janeiro, em 1930 - ACERVO CASA DE OSWALDO CRUZCom honrosas exceções, ser professor universitário no Rio de Janeiro dos anos 20 era ofício para homem, branco e rico.  Ser aluno também. As turmas somavam até 200 estudantes, no caso da Medicina e da Poli. No Direito, as classes eram menores. Todos frequentavam as aulas com figurino solene – sempre de paletó, gravata e sapato social.
“Atuar como docente significava – em linhas gerais – fazer parte de um reduzido grupo de homens brancos, letrados, pertencentes, portanto, a uma elite cultural e econômica”, resume a professora Libânia Xavier, titular da Faculdade de Educação, pesquisadora da história do ensino superior no Brasil.
“Ser docente em 1920 era algo completamente diferente do que é hoje. Não existia a figura do professor em tempo integral, muito menos de dedicação exclusiva”, afirma Helói Moreira, ex-diretor da Escola Politécnica da UFRJ. O professor, que organizou o livro “Memórias da Escola Politécnica II”, ajuda a contar a história do magistério nos primeiros anos da universidade. “Os professores ingressavam por concurso. Existiam concursos para catedrático, e os alunos assistiam às provas dos concursos, pois havia uma disputa muito grande entre os candidatos”, comenta.
 Não havia uma carreira universitária. Os catedráticos eram responsáveis pelas cátedras e espécie de “donos” de uma determinada disciplina. “No Império, os catedráticos tinham os mesmos salário e status social que os desembargadores”, conta Antônio Braga, professor da UFRJ e ex-presidente da Sociedade Brasileira de História da Medicina. A equivalência entre as duas carreiras públicas deixa de existir no começo do período republicano.
Também existiam os professores ordinários – que trabalhavam diretamente com os catedráticos – e os livres-docentes, que não eram funcionários da instituição.
WhatsApp Image 2020 09 07 at 13.11.531Em 1968, na ditadura militar, a figura do catedrático deixou de existir e deu lugar a uma estrutura em que os departamentos são responsáveis pela coordenação dos cursos. Na mesma reforma, foram criados os cargos de professor titular, adjunto e assistente.
Para Antônio Braga, a figura do catedrático era importante para o curso, mas sua presença também atrapalhava o desenvolvimento na carreira dos demais professores. “Era uma estrutura que não conseguia mais responder aos desafios do ensino e pesquisa”, defende. Ele também aponta um caráter mais democrático na atual estrutura. “O chefe de departamento é eleito pelos seus pares”.
 As mudanças no meio acadêmico são contemporâneas de restrições às liberdades democráticas. Durante esse período, 26 pessoas (24 alunos e alunas e dois professores) da UFRJ foram assassinados ou desapareceram, segundo informações da Comissão da Memória e Verdade da universidade. Quarenta e quatro docentes foram expulsos.

CONCURSOS DESDE O INÍCIO
A admissão dos professores já era feita por concurso público desde o tempo do Império, e a validação institucional do processo era inquestionável e imprescindível. Uma anedota contada pela professora Gisele Sanglard, coordenadora da Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da COC/Fiocruz mostra bem o comprometimento da Faculdade de Medicina com seu concurso. “Em 1883, o renomado professor Carlos Arthur Moncorvo de Figueiredo recusou-se a fazer a prova para a cátedra de Pediatria porque se considerava hors concours”, conta a professora. Barata Ribeiro, um higienista, fez a prova e assumiu a cátedra.

CONHECIMENTO IMPORTADO
Há cem anos, segundo Helói, a maior parte do ensino da Escola Politécnica ainda derivava do conhecimento produzido na Europa. “Não havia uma produção de livros por parte dos professores. Eram livros estrangeiros, na maioria, e normalmente franceses”, diz o docente. “Consequentemente, havia a questão das apostilas, em que os professores preparavam as suas matérias”, acrescenta.
Helói, que hoje é presidente da Associação dos Antigos Alunos da Politécnica (A3P), ressalta a participação dos estudantes em 1920 no desenvolvimento do material. “Principalmente no caso da Politécnica, o diretório acadêmico é que editava as apostilas dos professores. Esse é um aspecto interessante, porque hoje em dia não é mais assim”.
Engenheiros de prestígio integravam a comunidade acadêmica, como José Pantoja Leite, Maurício Joppert da Silva e Paulo de Frontin. “A Escola tinha grandes professores, figuras consideradas expoentes na Engenharia brasileira”, lembra Helói.
Outro fato relevante na história da unidade é a ligação com a organização dos cientistas brasileiros. “A Academia Brasileira de Ciências foi criada em 1916, pouco antes da Universidade do Rio de Janeiro, mas dentro do prédio da Politécnica, no Largo São Francisco. A maioria dos integrantes da Academia era também professor da Escola”, finaliza.
Decano do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas, Flávio Martins entende que a essência de ser professor há 100 anos e agora se mantém a mesma. “É um exercício de poder, ou seja, do poder de transmitir, de relacionar reconhecimento e de se tornar referência para outras pessoas”, afirma. Mas o ensino se transformou com o tempo. “Me parece que hoje a figura do professor tem uma relação dialogal que talvez não existisse naquela época”, completa o decano e ex-aluno da FND. “Hoje é possível aplicar um processo individualizado de ensino e aprendizagem. Essa é uma marca que diferencia o docente do passado com o do presente”, reforça o professor Antônio Braga.
A Universidade do Rio de Janeiro, primeiro nome da UFRJ, ainda não estava ancorada nos três pilares – ensino, pesquisa e extensão. Nos primeiros anos, ainda no Catete, a faculdade de Direito contava apenas com salas de aula, não havia espaços para pesquisa ou locais de encontro. “O professor dava a aula e ia embora. Não havia um lugar em que ele pudesse receber os alunos, as bibliotecas eram acanhadas”, informa Marcos Tavolari, diretor de assuntos históricos da Associação dos Antigos Alunos de Direito da UFRJ (ALUMNI FND).  “Quem lecionava e publicava era um grande intelectual, conseguia que as suas ideias fossem reproduzidas nos jornais”, recupera o advogado.

WhatsApp Image 2020 09 07 at 13.47.23HORÁCIO MACEDO Foi o primeiro reitor eleito pela comunidade acadêmica, em 1985. Foi um dos redatores do Artigo 207 da Constituição de 1988, que versa sobre a autonomia universitáriaDos cem anos da UFRJ, eu vivi intensamente os últimos 38. Ao pensar nisso, me surpreendo que os anos tenham passado tão rápido, embora seja um clichê tremendo e não devesse abrir assim um artigo num momento tão solene e importante para todos nós. Solene não apenas pela pompa e a formalidade, mas pela seriedade e relevância da data. Mas, é isso mesmo: parece que foi ontem que entrei na Faculdade de Letras, na nossa “saudosa maloca” da Av. Chile, em março de 1982. As péssimas condições em que se encontrava o prédio da Faculdade, sede provisória há tantos anos, contrastava com a riqueza e o dinamismo da vida acadêmica que ali experimentávamos. Era uma produtiva mistura de sonhos para o futuro, um passado cheio de rupturas e revoluções para ser celebrado e o fim do regime autoritário ao alcance de nossas mãos. A quantidade de sonhos que depositávamos nas faixas que pintávamos para a passeata de um milhão pelas “Diretas Já” era incomensurável. Era como se fosse possível combinar as lições de liberdade que recebíamos de tantos mestres nas salas de aula com a possibilidade de construção de um futuro melhor nas ruas da cidade.
Isso foi na Faculdade de Letras. Aprendi a amar a UFRJ na grande greve de 1984, quando a vi inteira e linda na primeira “Universidade na Praça”, WhatsApp Image 2020 09 07 at 13.47.22Preparação para a passeata de um milhão pelas Diretas János jardins do nosso Museu Nacional. Da greve à primeira eleição para Reitor foi um pulo. Horácio Macedo marcou profundamente nossa história. Ecoa em mim ainda hoje a sua voz, que dizia ser urgente fazer com que a universidade pública fosse amada e respeitada pela sociedade. E então vieram os grandes debates eleitorais para a sua sucessão e toda a imensa polarização que vivemos naqueles anos. Como esquecer dos auditórios lotados e as intervenções do Horácio e do Luiz Pinguelli, que mobilizavam nossos corações e mentes? Mas, se apurarmos o olhar para a década de 1990, veremos o quanto nos custou as nossas divisões e eternas discussões, principalmente porque ocorriam num cenário dramático de rebaixamento salarial e de violenta restrição orçamentária. As entidades resistiam, greves e manifestações agitavam nosso dia a dia, a instituição tentava de todas as formas, sobreviver.
Em julho de 1998, a tensão na UFRJ chegou ao ápice, permitindo que o governo encontrasse um caminho para a nomeação daquele que não teria mais que 11% dos votos da comunidade universitária na eleição para Reitor. José Henrique Vilhena se tornou Reitor porque entrou na lista tríplice elaborada pelo Consuni, mas principalmente porque o FHC rasgou seus compromissos com a democracia e aceitou nomeá-lo. Há uma dupla conjunção, que não podemos esquecer, pois o governo federal havia mudado a legislação para tentar obrigar a universidade a incluir na lista tríplice o nome dos candidatos minoritários. Mas o imbróglio da posse e os obstáculos da gestão, o retrocesso institucional e o esgarçamento de todo o tecido social da UFRJ nos serviram de lição. A candidatura de Carlos Lessa foi um passo dos mais importantes da nossa história, eleito com 85% dos votos da comunidade universitária. Recomeçamos, a UFRJ se recompôs de suas fraturas. Em seguida, foram dois mandatos do Aloisio Teixeira, cuja tônica era a pacificação, a construção de pontes e a superação de nossa histórica fragmentação.
As duas últimas eleições para reitor demonstraram a maturidade democrática e a lição aprendida pela instituição. Roberto Leher foi eleito num pleito disputadíssimo, por uma pequena margem percentual, tendo sido, inclusive, derrotado entre os docentes. Não houve questionamento sobre a legitimidade do processo, seu nome seguiu para o MEC sem intercorrências e sua sucessão, também. A eleição da Denise Pires, conduzida já num mar tempestuoso e cheio de incertezas, demonstrou o grande concerto democrático que culminou com a nomeação da primeira mulher na reitoria da UFRJ. Para isso, foi preciso uma condução segura da reitoria, mas também o comprometimento dos outros candidatos de não permitirem que seus nomes estivessem disponíveis para qualquer aventura no momento de composição da lista tríplice no Colégio Eleitoral, assim como o compromisso de todos os conselheiros dos colegiados superiores em respeitar o pacto democrático na composição da lista. Ou seja, a vida democrática na UFRJ depende sempre de um consenso livremente aceito, pois paradoxalmente, em todas essas décadas de democratização, nunca conseguimos chegar a um novo pacto institucional garantido pela atualização de nossos estatutos.
A minha geração chegou na universidade no momento em que usufruíamos da luta e do sacrifício de tantos que nos antecederam. Ao entrar na Letras já era rotina a eleição dos chefes de departamento por todos os docentes e não mais pelo corpo deliberativo apenas. Os estudantes ocupavam 1/5 das cadeiras nos órgãos colegiados e nossos professores podiam falar livremente nas salas de aula. Ainda era o governo Figueiredo, mas era o fim da ditadura. Nenhum colega meu desapareceu de repente, nenhum de nós precisou sair escondido no porta-malas dos carros dos professores mais conservadores para despistar a polícia, nenhum de nós foi torturado. Claro que não vivíamos num mar de rosas, mas tivemos a chance de mudar um pouco essa história, e a UFRJ foi uma grande protagonista na elaboração do capítulo sobre a Educação na Constituição de 1988. Saímos em uma caravana de centenas de pessoas – estudantes, professores e funcionários – para ajudar a escrever dois princípios constitucionais essenciais para a nossa sobrevivência até hoje: a universidade é autônoma e o ensino público é gratuito.   
O que nos salta aos olhos ao rever ainda que rapidamente a nossa trajetória, é que mesmo diante das mais graves crises institucionais e do mais perverso quadro de restrição orçamentária, nós seguimos produzindo um ensino de alta qualidade, uma pesquisa científica de ampla inserção internacional e reafirmando nosso lugar de vanguarda nacional, figurando sempre como uma das mais importantes instituições do país. Os laboratórios, as bolsas para pesquisa (desde a iniciação científica às de produtividade e de pós-doutorado), a liberdade de cátedra, e mais recentemente, as políticas de inclusão e democratização do acesso à universidade não caíram do céu. São os frutos mais doces de todas essas enormes batalhas. Aos que chegaram há pouco na UFRJ, aos que aqui estão mesmo que um pouco cansados pela idade avançada, a todos nós cabe nesse momento uma decisão difícil, mas necessária. A reforma administrativa que acaba de ser entregue ao Congresso Nacional pelo desgoverno federal, assim como o projeto de lei orçamentária anual (PLOA) para 2021, se passarem, nos jogarão mais uma vez para o cenário desolador de antes de 1980: ausência de carreira, vários regimes de trabalho e estrangulamento orçamentário. Tal como Sísifo, recomecemos. É necessário combinarmos nossa dedicação à vida acadêmica à luta sem descanso em defesa da universidade pública que nos formou e que nos recebeu como docentes. Ou trairemos a memória e a história de todos que vieram antes de nós.

eleonora artigoEleonora Ziller
Professora Associada da Faculdade de Letras e Presidente da AdUFRJ

 

Lucas Abreu, Kim Queiroz e Liz Mota Almeida

 
Direito, Medicina e Politécnica já existiam antes da criação da Universidade do Brasil em 1920. Conheça um pouco da história das três unidades que fundaram a UFRJ
 
»FACULDADE NACIONAL DE MEDICINA«
WhatsApp Image 2020 09 07 at 12.45.441Quando a UFRJ foi fundada, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro já passava dos cem anos. Criada, em 1808, por Dom João VI, a instituição já tinha, em 1920, uma história respeitável, com médicos de renome entre os seus ex-alunos e no quadro de professores, uma sede suntuosa e uma marca impressa na Medicina brasileira.
 “A Faculdade de Medicina era maior do que a Universidade do Brasil”, diz o professor da UFRJ Antônio Braga, ex-presidente da Sociedade Brasileira de História da Medicina. “A UFRJ ainda não tinha se estruturado enquanto universidade, e já tinha uma Faculdade de Medicina mais que centenária. Isso também refletia o jogo de poder que se construía na universidade”, analisa. Braga ilustra a situação a partir de uma anedota: Pedro Calmon, reitor da UFRJ que por mais tempo ocupou o cargo, não se conformava com a ideia de a reitoria ter uma pequena sede no Centro do Rio, enquanto a faculdade ocupava um palácio.
O palácio em questão é a antiga sede da Faculdade de Medicina, na Praia Vermelha, inaugurado em 1918. O prédio foi utilizado até 1973, quando a Medicina se mudou para o recém-inaugurado campus da Ilha do Fundão. No mesmo ano o edifício foi demolido pela ditadura militar. “A ditadura queria tirar a intelectualidade universitária do Centro do Rio”, revela o professor Antônio Braga. “A demolição do prédio da Praia Vermelha foi um ataque simbólico à UFRJ”, episódio que o professor acredita ter sido talvez a maior agressão que a universidade sofreu em sua história.
Mas se tinha uma sede suntuosa, faltava à Faculdade de Medicina um hospital para as atividades do internato, parte do curso no qual os alunos fazem um estágio prático. “A grande questão da década de 1920 era ter um hospital de clínicas próprio para a prática dos alunos”, contou a professora Gisele Sanglard, coordenadora da Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde da COC/Fiocruz. As atividades do internato aconteciam nas Santas Casas, na Maternidade-Escola e onde hoje é Instituto de Atenção à Saúde São Francisco de Assis. Só em 1978 a UFRJ inaugurou o seu hospital universitário, no Fundão.
Nas duas pontas do centenário da UFRJ estão dois reitores oriundos da Faculdade de Medicina: Benjamim Franklin de Ramiz Galvão, o primeiro, e Denise Pires de Carvalho, a atual. Entre eles ainda passaram pela reitoria Fernando Magalhães, Raul Leitão da Cunha e o próprio Clementino Fraga. É emblemático que a Medicina tenha cedido tantos reitores para a universidade.  O equilíbrio de forças pode ter mudado nos últimos cem anos, mas não tirou nenhum brilho da Faculdade de Medicina, e sua importância para o Brasil e para a UFRJ.
 
»ESCOLA POLYTECHNICA«
WhatsApp Image 2020 09 07 at 12.45.44A história da Escola Politécnica da UFRJ revela os bastidores da edificação de um país. Com um passado que remete ao período colonial, a unidade que hoje abrange todas as graduações de engenharia da universidade deu origem ao desenvolvimento tecnológico brasileiro.
“A Escola foi responsável pela formação de gerações e mais gerações de engenheiros de renome”, afirmou o professor Helói Moreira, superintendente do Museu da Poli. “O concreto armado surgiu no Brasil por um ex-aluno da Escola, Emílio Baumgart. As estradas de ferro, com Paulo de Frontin. Antônio Alves de Noronha, nas rodovias. Era a construção de um país”, pontuou.
Uma construção que começou em 1792, com a criação da Real Academia de Artilharia, Fortificação e Desenho. Sucedida, em 1810, pela Academia Real Militar. A instituição que um dia viria se tornar a Poli iniciou o ensino de engenharia no Brasil, e é considerada a sétima escola de Engenharia mais antiga do mundo, e a primeira das Américas.
Situada inicialmente na Casa do Trem, que hoje integra o Museu Histórico Nacional, a Academia Real Militar teve sua sede transferida em 1812 para o Largo de São Francisco de Paula, onde se manteve até 1966.
Atualmente ocupado pelos Institutos de Filosofia e Ciências Sociais e de História da UFRJ, o prédio no Largo de São Francisco de Paula foi o primeiro construído no Brasil para abrigar uma escola superior. Considerado o “berço da Engenharia Brasileira”, lá estava localizada a Escola Politécnica no ano de 1920, quando nasceu a UFRJ.
Inicialmente subordinada ao Ministério do Exército, a instituição chegou a ser denominada “Escola Militar” e, posteriormente, “Escola Central”. “Somente em 1874 a Escola passa a pertencer ao Ministério do Império e recebe essa denominação de Politécnica”, contou Helói. Desse momento em diante, a Escola passou a atender apenas alunos civis. “Em 1920, já não havia nenhuma conotação militar”, apontou.
A Poli carrega em seu histórico o pioneirismo. “Já na década de 20, havia a pós-graduação, criada ainda antes, na época militar”, destacou Helói. “Evidentemente que as pesquisas não eram corriqueiras, pois não havia agências de fomento, como existem hoje”, completou.
Hoje, a Escola Politécnica da UFRJ forma engenheiros em 12 habilitações diferentes, mas em 1920 já havia um grande leque de opções. “Havia um curso de Artes e Manufatura, que era voltado principalmente para a indústria têxtil. Havia também as Engenharias Naval, Ferroviária, Civil, Mecânica e Metalúrgica”, disse Helói. “Mas os alunos faziam mesmo era o curso de Engenharia Civil. Naquela época, podia se fazer dois cursos simultaneamente.”
 
»FACULDADE NACIONAL DE DIREITO«
WhatsApp Image 2020 09 07 at 12.45.442A fundação da Faculdade Nacional de Direito resulta de uma fusão de escolas e de uma reação libertária para o ensino superior no Rio de Janeiro, explica o ex-aluno Marcos Tavolari, diretor de assuntos históricos da Associação dos Antigos Alunos de Direito da UFRJ (ALUMNI FND).     
Antes do período republicano, “as classes conservadoras preferiam que os filhos continuassem estudando em Coimbra”, explica Tavolari, em referência à universidade portuguesa. O objetivo era evitar a disseminação de idéias liberais, especialmente na capital. Em São Paulo e Pernambuco, faculdades haviam sido criadas com apoio das oligarquias locais. Iniciativas semelhantes foram sufocadas no Rio.
Em 1882, Fernando Mendes de Almeida, um jovem advogado de perfil mais liberal, reúne alguns intelectuais da cidade para criar uma faculdade, no dia 18 de abril. “Rua do Carmo 74 é o endereço da primeira ata de Congregação da FND. Mas o governo imperial não autorizou o funcionamento da escola”, conta o diretor da associação de ex-alunos. Só em 1891, dois anos após a proclamação da República, a Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro ganhou permissão para abrir o curso.
 “Ao mesmo tempo, é criada outra faculdade livre na capital, a Faculdade Livre de Direito, da família França Carvalho”, relembra. Essa outra escola mudou de lugar algumas vezes: funcionou no Mosteiro de São Bento, no Liceu de Artes e Ofícios, na Escola Normal do Rio de Janeiro até chegar ao prédio perto do Campo de Santana, na área do Tribunal de Contas do Rio de Janeiro.
As duas faculdades coexistiram, com alguma rivalidade, de 1891 a 1920, explica Tavolari. Entretanto, a Faculdade Livre de Ciências Jurídicas e Sociais se desenvolveu mais. Em 1912, esta Faculdade comprou um prédio na Rua do Catete, 243, onde a FND funcionou até 1937. O mesmo imóvel se tornaria berço de outra importante instituição do Rio, na década de 40. “Alguns ex-alunos, também professores, resolveram criar uma faculdade ali, que seria a Faculdade de Direito do Catete, e deu origem à UERJ”, afirma. “Aquele prédio, matriz de fundação de duas universidades, hoje está abandonado em ruínas”, lamenta.     
Muitos professores davam aulas nas duas instituições. E, quando o governo republicano decidiu criar a universidade, em 1920, ambas foram estatizadas e fundidas um pouco antes, em maio. “Entre criar uma do zero ou federalizar escolas particulares, que já recebiam tremendos incentivos estatais, era natural que se buscasse uma fusão dessas escolas”, explica.  A integração, para o ex-aluno, não foi bem feita. “Era a costura de escolas isoladas, que continuaram com a mentalidade de serem assim. Continuaram funcionando de maneira isolada, e ganharam o selo de universidade”.
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